1 de dezembro de 2008


Numa dessas noites frias, em que a lua, triste, se esconde por entre nuvens, que, cúmplices, choram, descem fadas e sonhos. Rita é criança e acredita.

Bater de portas, abrir de janelas, tocar de telefones , sons de computador.
Rita procura ouvir o prenúncio da mudança.

A cada som, contas simples de multiplicar denunciam o bater do coração.

Procura-te com a veemência de quem não se encontrou numa noite fria de Inverno, em que tudo lhe é alheio.


(Bartolomeu dos Santos)

16 de novembro de 2008

O meu amor bateu com a cabeça numa rocha.


O meu amor bateu com a cabeça numa rocha.

Era um amor de Rita, um desses amores grandes no momento, mas que se abatem com o passar das horas. Era, por aqueles dias, o seu amor, contudo. Numa rocha, talvez fosse metafórico. Paulo, astuto, perguntou: Então, o que se passou?

O meu amor bateu com a cabeça numa rocha. Rita repetiu a frase.

Paulo, silencioso, intimidou-a, forçando-a a desfazer-se em mais palavras.

Perdi-o e prefiro-o (saber) morto.

(Paula Rego, o fim da história)

7 de novembro de 2008


Olhou para aquela ruga como se fora a única marca no seu rosto.
Até àquele momento, Ana havia desafiado o tempo e se dito velha, mas agora havia marcas que não necessitavam da sua voz para serem percebidas.

Uma ruga, que não desaparecia com o desfazer da expressão, mas que permanecia, teimosa, como todo aquele corpo, a insistir para que se prendesse a um mundo de relógios e calendários, aos quais não poderia mais ser indiferente.

Chegaria o dia, onde lhes perderia a conta, mas aquela seria sempre a primeira, num tempo que passa e deixa marcas.

1 de novembro de 2008


Agitou-se como nunca num corpo tão só seu ao som da música de sempre, que ela própria entoava.

Olhares perdidos encontraram-na e, mais perdidos, soltaram risos.


Rio-me eu mais, porque sei por que danço!


Indiferente, ou pelo menos com uma aparente indiferença, Filipa, autónoma e inexorável, permaneceu, em múltiplos movimentos num ritmo único que lhe pertencia.

Terminada a música, porque até estas têm um fim, caminhou segura até ao extremo da porta, onde a esperava a vida de sempre atrás de um avental.


(Louise Bourgeois)

29 de setembro de 2008


Um coração cansado para amar palpitou duas vezes, não mais, e era já um sinal de vida. Cristina, já pouco hábil para o amor, mas ainda conhecedora daquele bater, duas vezes, como a paridade que todos procuramos, levantou-se e viu-lhe o rosto. Nada mais.
Havia livros, havia regras, que conheceu tão bem, que as escreveria não fossem já terem nascido sedutores semelhantes, mas havia aquele cansaço impregnado que a derrubava, aqueles vícios e teias de que não se conseguia desprender e que a encerravam numa grotesca incompetência para amar.

Demasiado tarde. Saiu como entrou, de mãos vazias, cúmplice com um coração que ironicamente ainda batia no seio do desespero.
(joana salvador)

24 de setembro de 2008

Discursos Imperfeitos


Houve cartas que não escrevi e palavras que nunca disse e nem uma lágrima me corre no rosto por isso. Nada se perdeu, continuava Ana, como se poderia perder? Não houve vitórias, não houve derrotas. Somos muito pequenos, nem todos os actos vão fazer estremecer o mundo, nem mesmo nós próprios.
Talvez abalar o mundo não deva ser a prioridade das acções. Contrapôs o outro, melhor seria se tivesse ficado no silêncio. Todos sabiam que quando botava faladura, Ana não valorizava contraposição, muito menos se gratuita. As opiniões não se discutem, estou a dar a minha, posso estar errada, mas não me importo.
Desta vez, diferente, Ana respondeu: Tens razão, nem todos os nossos actos tem esse objectivo, muito pelo contrário. Percebeu-lhe a estupidez, mas preferiu não deixar-se ferir, estava muito presa aquele texto. Retomou. Posso conviver com essa inutilidade de muitos gestos meus, assim como aqueles que deixei de fazer.
Falou ainda de vidas, de percursos pequenos, condenados de início que, nem por isso, deixam de o ser.
Não devemos esperar muito de uma vida onde não somos os únicos actores. Se este palco fosse só meu...Não conseguiu prosseguir por mais tempo, todas as palavras soavam-lhe ocas e limitou-se ao habitual, tentando fingir que aquele pateta não lhe havia arruinado o discurso.
(lourdes de castro)

22 de setembro de 2008


Acordou com um desagradável odor a vazio, o mesmo em que conseguira vencer a insónia.

Estava tão velha e acabada. Repetia-se em si própria o que ouvira contar a Filipa. Fugir dos que nos trazem tão más notícias. Filipa contou-lhe prontamente, era um misto de admiração e ódio para com a diva. Ana ouviu e, como sempre, ensaio um riso de desprezo, não maior do que o da outra, que regozijava com a má nova.

Chegada a casa, a história era diferente. A mais tinha descoberto três rugas fortes de cada lado dos seus olhos, que há muito a massacravam. Não esperava um Dorian Gray, mas custava-lhe assimilar aquele fardo, pesado demais para quem acreditava ainda não ter começado a viver.

O tempo por ti não passa. Como sempre, tão bonita. Ainda que estes fossem mais frequentes, esfregados em tantas circunstâncias sociais, Ana revia-se com outras estatísticas e o velha e acabada soava-lhe a verdade crua: um coração pobre e cansado numa carcaça que envelhecia precocemente.


(amélia fernandes)

11 de setembro de 2008




Enfrentou as rugas, uma a uma.
Por cada ruga um sonho perdido, ainda lhe saiu a frase, mais poética do que real. Bom seria que assim fosse, eram bem mais os sonhos derrotados do que aqueles riscos na sua face.
Margarida perdera-lhes a conta.
Nascera com o rasgo incrível para sonhar. Caminhava com o brilho dos olhos de quem acredita. Viu-lho José tantas vezes, assim como as em que lhe amparou a frustração.
Viu ela os sonhos, todos e mais alguns, através da câmpanula de vidro onde se agitava. ( Como se houvesse mais alguns que aquela cabeça não se lembrasse... Havia, pois, mas paulatinamente se calaram nesse mesmo mundo em que Margarida se fechou. )
Via-os ela todos os dias quando se investia num mundo que lhe era alheio. Reconhecia-se como ninguém. Eram as suas roupas, as suas frases, os seus amigos... Era ela, no corpo de outra, e de outra, de tantas outras que podiam sorrir.
Margarida recolhia-se naquele espelho, onde tentava integrar a vida frustada naquela cara enrrugada.
Havia duas pernas que sozinhas não podiam andar. Não somos os únicos motores da nossa vida, tentava calar o abalo do ego.
Havia uma vida que não era a sua, mas que tinha que viver. Não nasci para isto, cada um é para o que nasce. A velha Dulce sempre lhe gritava ao ouvido. Cala-te, mulher. Dorme. Amanhã é outro dia.

(paula rego)

4 de setembro de 2008




Rita acordou sobressaltada. Tinha-se visto, de um modo tão claro como só ela o poderia.

Um lençol desbotado a cobrir uma cama onde se debatia sozinha contra a insistência de uma insónia.
Uma almofada inútil no repousar e uma outra igualmente frustrada.

Não houve um abraço, um beijo, uma mão que encontrasse a sua.

Não viu Paulo, o primeiro e único amor da sua vida, não viu Gonçalo, Ricardo ou José, ou qualquer um dos que sucederam.

Apenas a almofada encardida onde se abraçava violentamente num esforço amargo, como todos os que são em vão, para fazer dela gente.


Uma luz fina que atravessava o estore e que denunciava a lua num espelho daquele guarda-roupa.
Esse tão conhecedor dos múltiplos ensaios de Rita para agradar e ser agradada.
Esse que a viu bela como ninguém, ou como ninguém a conseguiu ver.
Esse que amaldiçou os que não tinham os seus olhos.
Esse que a atraiçoava agora e lhe mostrava rugas secas numa cara sem vida.
Que a revelava só e despida, com o prazer de quem assiste ao fim tal como o descrevera.
Que se levantava numa noite cruel e denunciava os pequenos pecados da diva.
Esse, a quem ela tinha dedicado toda a sua vida, tão inutilmente...

O ranger de todas as madeiras sucedeu aos pequenos estalos de uma televisão acabada de desligar, depois um vazio que lhe cortava a alma e a deixava ouvir o palpitar de um coração já cansado para se debater contra mais uma insónia.

Há muitas vidas no mundo e nem todas podem ser pintadas da mesma cor, pensou talvez ainda durante aquele sonho.
(Bartolomeu dos Santos)

31 de agosto de 2008


Talvez nunca o ouvisses, mas Ana disse-o claramente. Tal como aqueles cometas que só aparecem de cem em cem anos, aquele tinha sido um acontecimento único e irrepetível.

Ana. De todos, menos de Ana, se esperaria tamanha afirmação.
Há coisas que só se deveriam dizer no último sopro de vida, porque afinal todos temos presente, mas sobretudo ela, o que um calendário ou até um relógio podem fazer a uma vida que se diz feliz.
Há coisas que só se deveriam dizer quando tivéssemos provas irrefutáveis e inabaláveis de que não vamos ser atraiçoados.
Há palavras que têm significados que ardem e que aleijam os que delas fazem um uso inadvertido.

Ainda assim
sem livros, árvores, ou filhos,
sem a quem chamar amor de vida, ou se embalar em noites de insónia,
com um grande nada e de mãos vazias carregando uns sacos de papel,

Ana desafiou os sonhos e quem escreve sobre eles, e, num raio de luz que rasgou o mundo, gritou ser feliz.

27 de agosto de 2008

E falou-lhe de um amor estranho.


Houve um não, que humedeceu olhos, quase até os seus.
Houve uma carta que lhe prometeu ser capaz de ultrapassar a dureza da resposta e devotar-se a um amor eterno.
Lida, lembrada e amarrotada, presa a um livro, vezes demais talvez para quem foi tão seguro no seu não. Ali permanecia de reserva, mas por quanto tempo?
Por quanto tempo seria capaz de prender um amor que não era o seu?
Rui começava a recear a perda de validade daquele precioso documento, ainda assim releu-o uma vez mais.
(Australian Post)

23 de agosto de 2008




É uma imagem? É uma imagem? É uma imagem que vale mil palavras?
Continuava Ana.


Uma imagem vale mil palavras.
Ouviam-se os risos. Paulo cúmplice sorria.


Quanto valerá o teu riso?
Pensou alto, talvez pouco.
E então o teu sorriso? Esse valerá mais?


Meu amor, o meu sorriso vale quanto tu quiseres.
Por momentos, pensaram, até mesmo a própria, que Paulo tinha conseguido o silêncio da diva, mas esta proseguiu após uma breve pausa.


E uma lágrima? Quanto vale uma lágrima?
Ouviu-se o silêncio de quem presta atenção.


Quanto vale uma lágrima? E se uma lágrima valer muito, quanto valerão as minhas?
Se eu chorar com muita força, deixo de me sentir?

Paulo permanecia cúmplice num mundo alheio
Estendeu-lhe o abraço de sempre que, também naquela noite, não lhe calou o sofrimento.

(As palavras acabariam por se esgotar horas mais tarde, como folhas rasgadas de um dicionário, que, nem por isso, deixa de existir.
Ana aceitaria o abraço e repousaria o tormento num ombro que não era o seu.
Paulo abandonaria um pedaço do seu coração já com pouca vida: guardado estará o bocado para quem o há-de comer!)

(Marlene Dumas)

19 de agosto de 2008


E depois veio um sorriso que a prendeu, como um daqueles mimosos e atrevidos de uma criança qualquer que não receia sê-lo.

Ana retribui, e, sabes, contava ela a Paulo, eu que até nem tenho muito jeito para esta coisa de sorrisos, sorri mesmo! Como se tivesse significado...

E teve-o. Não o quis admitir a Paulo, sempre tão avesso a deixar-se prender pelos estranhos, mas estava consciente do poder daquele sorriso.

Talvez este nem fosse suficiente ou talvez Ana não seja a mesma, mas já tinha visto antes sorrisos daqueles e sabia bem por que caminhos eram capazes de a conduzir. De qualquer modo, por agora, Ana esforçava-se arduamente por conservar a sensatez e para que este fosse apenas um sorriso lindo.

(barbara kruger)

1 de agosto de 2008

Sublinhados


"E também sou o único que pode recordar aquela vez em que fui desleal com o José Dinis. Andávamos com a tia Maria Elvira no rabisco do milho, cada qual no seu eito, de sacola ao pescoço, a recolher as maçarocas que por desatenção tivessem ficado nas canoilas quando da apanha geral, e eis que vejo uma maçaroca enorme no eito do José Dinis e me calo para ver se ele passava sem dar por ela. Quando, vítima da sua pequena estatura, seguiu adiante, fui eu lá e arranquei-a. A fúria do pobre espoliado era digna de ver-se, mas a tia Maria Elvira e outros mais velhos que estavam perto deram-me razão, ele que a tivesse visto, eu não lha tinha tirado. Estavam enganados. Se eu fosse generoso ter-lhe-ia dado a maçaroca ou então tinha-lhe dito simplesmente: «José Dinis, olha o que está aí à tua frente.» A culpa foi da constante rivalidade em que vivíamos, mas eu suspeito que no dia do Juízo Final, quando se puserem na balança as minhas boas e más acções, será o peso da maçaroca que me precipitará o inferno..."


José Saramago As Pequenas Memórias, 2006
(Graça Morais)

Rita apagou-se no espelho,
caiu nos fragmentos de um reflexo
enquanto esperava pelo tempo
que a devolveria a uma vida

....


Esperar angustia, dói, mas não mata
e a vida corre inexorávelmente
Testemunham os ponteiros de um relógio,
os sinos de uma igreja,
mesmo quando marcam o fim de quem foi.
Testemunham as voltas de um mundo
um sol e uma lua que se beijam sem a tua permissão.


....
Rita espera,
Agita-se
Faz-se louca para se dividir
Relê o livro
Saiu-lhe o grito e nem o ouve...
Conta-lhe
Diz-lhe que tudo virá com o tempo
Tudo o que tiver que vir, claro
.
hf
(a segui)

31 de julho de 2008


Recebeu um forte aperto que lhe disse é tudo um sonho.

De facto, era um sonho: um sonho esse aperto e essa sensação.

Por fracções de segundo, Ana sentiu a alegria infantil de fazer tudo nulo, mas depois veio o acordar e o perceber que havia um sol que lhe mostrava as cores do vazio.
hf
(paula rego)

16 de julho de 2008


Sonharam e permaneceram com olhos ainda fechados, tentando saborear o que a noite trouxera: uma menina de vestido azul, num jardim de amores perfeitos, uma cor que ultrapassava o preto e branco, um sei lá de coisas que se iam apagando, indiferentes ao esforço daquele par.
A luz daquele dia, entediada pela sua inutilidade, fez uso das suas artes mágicas e Pedro e Ana lá abriram os olhos, mas riram-se tanto e tão alto de um sonho lindo em que foram cúmplices, que a luz evanesceu frustrada.

5 de julho de 2008

carrinho de duas rodas




Era um carrinho de duas rodas, se mais rodas havia, não as vi.


Estranho... Um carro não tem duas rodas, ainda se fosse uma bicicleta... Não era um carro. Não podia ser!


Eu vi um carrinho e vi que tinha duas rodas, se mais rodas havia não as vi.


Não era um carro, não podia ser um carro. Se viste um carro, tinha de ter quatro rodas. Por que insistes num erro?


Insisto porque vi: vi um carrinho e vi que tinha duas rodas, se mais rodas havia não as vi.


O sol contou à lua essa discussão sobre um carrinho de duas rodas. O dia fechou-se e quando se abriu de novo, ainda se ouviu a lua a contar ao sol tudo o que ouvira. Juntos, reconstruiram a história de um carrinho com duas rodas e riram-se à volta de um mundo de orelhas moucas.

29 de junho de 2008

.












Que o vazio entre em cena como força única até a um derradeiro solilóquio. Nada mais.
O resto cumprirá o seu papel e cairá num desespero sem fim.

23 de junho de 2008


Agarrou-te ao sofrer como prova última de que não devemos amar, nem ser amados.
Contou esse desgosto em melodias suadas em notas suas.
Falou de palavras de dor extrema que substituiam o seu próprio nome.
Caiu numa queda bastante singular.
Abandonou-se num isolamento desigual.


A janela abriu-se e a lágrima perdeu-se com tantas outras naquela rua: estranhou o sofrimento . Nem mesmo esse só seu.


h

3 de junho de 2008

Guardou palavras


Disse-lhe que preferia o silêncio.
Nada mais poderia ser dito.
Frustado, o vento partiu em busca de novas palavras.
Encontrou-as à sombra de árvores que falavam de ninhos de Primavera,
por debaixo de janelas que exibiam amores que nunca acabam,
em campos de flores que se abriam para um sol que nascia para todos.
Abriu livros,
Rasgou poemas
Fustigou cartas de amor...
Regressou, com a mesma frustação com que partira.
Encontrou as duas bocas, cerradas, sem palavras.
Ao vê-lo chegar e sabendo o que procurava, um papagaio fez troça:
onde nada se diz, fica tudo no pensamento e nada para o vento.


hf
(fátima mendonça)

25 de maio de 2008

choveu tanto naquele dia



No início, todos acharam graça: o cheiro da terra molhada, a bom tempo vinha para as colheitas, também é preciso que chova, abril águas mil, entre muitas outras expressões de louvor ou pacífica aceitação que fluíam na boca de todos.
Depois, despertou-se a repulsa a um tempo que tardava em não mudar. Houve uns, em que essa reacção veio bem cedo; outros só muito lá para o fim. Era o incómodo de ter de andar sempre de guarda-chuva, a roupa de verão que se queria usar, o desagradável de estar tudo molhado, até mesmo a roupa que já não secava Ateou-se o fogo da desgraça e todos, ou pelo menos a maioria visível, estavam já contra esta chuva.
E depois?

Protestar. Manifestar. Um abaixo-assinado, a entregar a quem? O governo? O governo estava longe de controlar o tempo atmosférico. Esgotaram-se rapidamente as ideias de projectos de revolta. Esperar pareceu o mais razoável. Ouviram-se risos quando um dos líderes de opinião o disse, que mais opções haveria senão a de esperar? Esperar não era uma opção, era o inevitável. Calava-se a revolta, agora inútil, e simplesmente aguardava-se que o tempo mudasse.


hf
(bem-vindo à cidade da paz, fátima mendonça)

11 de maio de 2008

tem de se errar


Rita descobre o erro e tenta percorrer-lhe o fio até à origem.

Errou porque assim teve de ser. O relógio não parou para que ela tivesse o tempo para se debruçar sobre o problema, analisá-lo com atenção e cuidado, ensaiar decisões e talvez só depois agir. Não. Rita não teve esse cuidados, tivera muitos outros, mas o imperativo da acção soou alto e fez.
Agora, vive o erro, conhece-o a forma e o conteúdo circulares, mas nenhum destes é estático e inabalável pelas horas ou pelas dias. Sabe que continuará, depressa tudo tomará outras formas, também estas susceptíveis ao tempo e ao andar das coisas...

hf
paula rego: o vómito

7 de maio de 2008

ter a razão


Ana convenceu-se da razão, gritou-o alto em gestos e palavras que veiculam bem aquela certeza. Se alguém estava errado, não era ela. Rita, imperdoável. Paulo, lamentável. Maria, nem valeria a pena comentar.

Expos os seus argumentos, vezes sem conta, sempre que alguém lhe perguntava sobre o que passara. Entre mortos e feridos, Ana saira com a certeza de que ninguém lhe poderia ter feito o que fizeram, Não haveria retrocesso até a mágoa passar e isso, bem sabia, só depois de uma prova séria de arrependimento. Ora, a prova não veio. Nenhum dos restantes envolvidos se adiantou com tal manifestação. E tudo isto martelava na cabeça de Ana.

Eram regras com a transparência matemática, universais, as que tinham sido ofendidas, como não se adiantarem os ofensores e mostrarem reconhecimento do erro e arrependimento? De muito pouco lhe valeria a certeza de estar certa, se os outros não agiam como tal? De muito pouco, mesmo, ao ponto de reconsiderar argumentos, avançar para o telefone e tentar colocar um ponto final em todo aquele espectáculo de profunda falta de sentido, mostrar ela própria arrependimento por uma eventual falha... Mas também isso não veio.
Ana estava diferente porque não estava só. Não eram três contra uma, era uma uma com muitas certezas dessas enraizadas e que falam por nós: o tempo passa, e estava disposta a esperar até que tudo se recompusesse.


hf

joao francisco

27 de abril de 2008


o vento soprou a palavra e levou-a para longe daquele velho dicionário. Houve lágrimas, risos e até pausas, mas ninguém percebeu a sua falta.

Anos mais tarde, um perito em história natural das palavras deu conta de que, de acordo com cálculos elaborados com a colaboração de grupos exímios na arte de fazer contas, teria já desaparecido mais de uma dezena de palavras do velho dicionário. Caiu em saco roto, como um daqueles prenúncios de que tudo está mal e ficará ainda pior.

Meses volvidos, um conhecido artista da televisão disse em público que lhe faltavam palavras, as revistas e os jornais juntaram a simples soma de factos e venderam. Era preocupação de domínio público: faltavam palavras no velho dicionário.

Venderam muito mais quando explicaram o movimento das palavras, que são arrancadas durante uma noite de inverno, partem com o vento para o universo. Talvez um dia, se juntem, num pequeno dicionário. Venderam mais quando especularam sobre quais as palavras em fuga e quais seriam as próximas. Na cidade, vendiam-se pequenas pastilhas com as putativas futuras fugitivas para mascar, pintavam-se palavras nas paredes, recorriam-se a todos os artefactos para que todos as tivessem presentes e as reconhecessem em caso de fuga.

O mundo mudara, estava desperto para esta realidade, nos livros de escola, nos jornais, na televisão, mas então como não eram capazes de sentirem a falta e até reencontrarem as palavras ausentes?... Teóricos cogitaram muito e vieram com estas: palavras leva-as o vento e tudo o que não há se escusa.


hf

chema madoz

17 de abril de 2008


Congelou o tempo e riu-se para trás. Tinha pouco jeito para o gesto, mas até imitou cuidadosamente e até pareceu um estridente riso de indiferença. Gonçalo repetiu umas quantas vezes, até se esgotar o seu tempo naquela conversa. Não queria pensar e ponto final. Não se escreve mais pelo menos naquela página. Se calhar há outro livro onde registamos este tipo de alheamento, não acredito que a vida ficasse indiferente aquele conjunto de acontecimentos. Esperava o momento em que tivesse de regressar, porém até esse dia, mantinha-se congelado.

hf
miguel telles da gama

28 de março de 2008

olhos cansados viram uma alma triste

Os meus olhos ou os teus?
Disse que, nessas alturas, sente todas as palavras lhe soam vazias e que não confiava na sua própria voz.
Falou de amores, de penas, de cruzes, de um coração que sofre, disse-me que amava, pediu um abraço, encostou-se e chorou.
Limpou as lágrimas e saiu-se com esta: nem mesmo sei se estas lágrimas são sinceras.
Amanhã, descansarei este corpo e recuperarei os olhos de sempre...


hf


(graça morais)

27 de março de 2008


Deu-lhe tudo e diz que recebeu pouco mais do que nada.

Hesitou no nada, mas ponderada colocou o pouco mais do que nada. Paula detestava dramatismos românticos e fugas a realidade aritmética a que se habituara. Com rigor, poderia dizer que recebeu algo em troca, mas a balança desquilibrava em claro desfavor para com ela. Lançou o desabafo, mas arrependeu-se. Estaria a cair nesse romantismo de que tanto se pretendia afastar? Ainda que houvesse essa possibilidade, continuaria no momento, tentando manter-se alheada de possíveis juizos de valor.

Sabes, não foi desta, também não foi desta que sinto a plena retribuição.

Gonçalo escutava indiferente.

Dói-me a alma sentir que eu faria tudo para que ele ficasse, e ele partiu. Dói-me a alma porque conheço o texto como ninguém, dou as deixas e nada se passa como o que quereria.

Gonçalo sorriu, incapaz de dizer que, embora fizesse o esforço, era evidente a sua incapacidade para compreender aquele desabafo. Pronto, teve de ir embora. E depois? Um sorriso também destrói, e Paula percebeu-o como reprovação.

Deixa lá, são coisas que me passam por esta cabeça depois de dez horas de trabalho.

Nessa altura, Gonçalo adiantou: eu compreendo.

Depois, foi o desejar que a conversa acabasse. Sentiu-se incompreendida, talvez patética.

Por que ainda continuo a querer?

hf

(Joana Salvador)

25 de março de 2008

riso das voltas que a pipa dava




Ainda agora me dá riso as voltas que a pipa dava! E ria-se como uma perdida.
Se dores tinha, daquelas no abdómen por tanto se rir, não parecia, por cada vez se tornava mais poderoso o estridor daquele riso.
Se havia um momento em que se pensava que ia cessar, o engano era imediatamente revelado quando se soltava num daqueles paroxismos nada contagiantes. Repetia a mesma frase, recontrui-a em inúmeros arranjos, trauteava-a como se de canção se tratasse, empenhava notas como se fosse música, mas logo explodia o riso.

Ria alto, tão alto, talvez não o suficiente para preencher o vazio do momento.

hf
(Paula Rego)

18 de março de 2008

Conta-me uma daquelas histórias que te faz sonhar.




Uma história, uma história pequenina ou até maior, que não me importo de te ouvir falar.
Fala-me de uma árvore de ramagem verde, com frutos vermelhos e redondos, onde debica um passaro azul.
Faz-me ver um sol amarelo e pintar-lhe um sorriso grande.
Desenha umas nuvens num céu azul e deixa aparecer o verde quando tocar o amarelo do sol.
Conta-me da casa pequena, com três janelas e uma varanda.
Pinta o fumo branco de uma chaminé alta.

Dá-me um baloiço entre flores mil onde tu e eu vamos rir e pára o relógio.


hf
(fátima mendonça, sem título)

17 de março de 2008


Não quis partir o momento, Paulo ecoou as mesmas palavras que se esvaziaram na boca de Ana. O tempo estava prestes a passar e ele sabia bem que as palavras depressam iriam deixar de ter sentido. Repetiu ainda assim as saudades que tinha, falou muito das que não tinha e das que deixaria de ter. Repetiu um sentimento forte, um do qual já começava a esquecer-se e que se apagaria quando Ana reencontrasse o amor de sempre. Foi redondamente oco, quando o telefone ouviu planos para o regresso, como se ainda houvesse lugar para os dois.
Ouviu ao longe o bater de um relógio de parede, que, ainda que velho e trópego, demarcava este momento: 11 horas e Paulo avançou.
hf
(lourdes de castro, auto-retrato)

15 de março de 2008


Nem sempre a corda se rompe do lado mais fraco. Se te pareceu que lhe passou ao lado, o engano foi grande. Ana caiu! O espanto viu o seu auge quando a história finalmente foi contada e se percebeu que tinha sido a primeira. A vida pode sempre surpreender-nos. (Ou talvez não, se estivermos muito próximos da realidade e com capacidade de adaptação bem flexível. ) Ana sentiu o circular frio no estomago: entregara-se cedo demais. Mas quem contou a história, viu tudo: não estava só! E essa foi definitivamente a surpresa...


hf

8 de março de 2008


Dói mais na alma saber que se existe mesmo depois da perda; que não ficamos caidos na maioria das vezes num desespero eterno; que este tem fim tal como a própria razão para o mesmo e que continuaremos.


Dói muito perceber que o mundo gira inexoravelmente e que os gestos tornar-se-ão inúteis; que o luto se fará, como já tantos os outros e depois de fibrosado, há que recomeçar.


Dói o circulo.


Dói a alma por saber que pode viver sem ti.


hf

(Graça Morais)


6 de março de 2008

Ruguites




Conhecido o processo de inflamação, é legítimo lançar o neologismo: ruguite. Acordou com uma ruguite no sulo nasolabial esquerdo. Parece-lhe científico? Como se define ruguite? Sabe quais são os sinais cardinais? Certamente, iguais às de qualquer inflamação. Incha, desincha e passa. Esta não passa, mas haverá as que passa? Haverá as que se agravam, recidivam ou até se resolvem espontaneamente? Haverá um eu que se afunda na força da gravação de uma ruga? Haverá a fibrose marcada da cicatriz de uma ruga. Haverá tudo e talvez mesmo nada. Vamos escrever um ensaio. Um dia destes!

hf
(paulo robalo, desenho sem papel)

10 de fevereiro de 2008


Tive um cubo de gelo derretido na espinha e senti um arrepio. Brutal, Ana dissolveu a possibilidade de troca de palavras. Tem punhos frágeis, mas também soube dizer basta naquela mesa. Guilherme fechou a boca por sentir a farpa, mas, imune e de resposta rápida, assaltou com mas a conversa não está a agradar?. Não, estou parva. Vou para casa. Distribui os beijos com um sorriso e fechou a porta. Foram gestos rápidos e pouco aborvidos, nem tempo houve para ouvir um O que se passa? da Rita, ou um Queres companhia? do António ou o bem mais sincero Também vou daqui a pouco e ligo-te de seguida. do Filipe. Os dois eram iguais, até onde a igualdade o permitia. Havia a diferença no agir: o cumprimento das regras, e que regras!, a que Filipe se submetia; mas também ele estava aborrecido com o Guilherme e com que este representava. Suportável, mas não naquele dia para Ana. Há dias em que não me apetece aturá-lo. Eu sei, mas vamos tomar café os dois. E foram, cúmplices uma vez mais sob aquele céu.
hf

1 de fevereiro de 2008

E depois veio o perder...



E perdeu tudo. Tudo o que tinha e julgava seu. Tudo que ainda era nada, mas lhe estava prometido. André percorreu aquela sala vezes sem conta, fazendo estranhos desenhos de desespero. Perder tudo? Havia coisas que nem se importaria e sempre soube que lhe eram emprestadas, mas e o resto que já era tão seu? E o que era quase seu? Surgiram estas no meio de tantas outras indignações.

O tempo passou, cerca de 30 minutos, André ensaiou esforços de resígnio e quis tirar do saco a sapiência que não era sua: tudo ainda será meu, mas de um modo diferente. Reconheceu imediatamente o seu alheamento a estas palavras, lançou um grande ai e a revolta continuou, continuou e continuou até o relógio marcar mais uma hora e André perceber o vazio dos gestos e palavras contra a pontualidade de um relógio e decidir calar todo o seu desespero.

hf

(júlio pomar: gato e o violino)



23 de janeiro de 2008

De volta à roda do mundo, ainda saberás rodar?


Patrícia auscultou-lhe um coração partido. Partido, Paula sorriu, do jeito que se faz quando nos dizem o óbvio. Nem um suspiro, nem um comentário, apenas um sorriso talvez também por ver-lhe reconhecida aquele lacinante aperto que a incomodava há muito. Sim, eu sei. Nada mais e já fui muito, talvez demais. Patrícia, essa armazenou o caso, mais um que se parte. Acontece. Fragilidades de um ser. Mas há coisas piores, pois então. Repouso, muito repouso. E as melhoras. Obrigada. Obrigada por quê? Por nada, mas saiu-lhe por educação. A dor era sua e teria aprender a viver com ela. Tudo passa... rematou a ciência ante um coração partido.
(fátima mendonça, cordeiro)
hf

2 de janeiro de 2008


Encontrei uma palavra a tentar cair do dicionário. A dúvida infiltrou-se-me por percursos já conhecidos. Talvez o primeiro ímpeto tenha sido o de a forçar a voltar, talvez fosse o segundo. Sei que foram tantas as voltas que perdi a noção de qual o primeiro movimento. Porventura poderia ser importante, fazer a memória ter um esforço, não vá esta ordem de aparecimento estar relacionada com a sua relevância. Não sei se o Guilherme já o sentiu, mas é tão terrível como descobrir que os dias se sucedem sem reflectirem a nossa vontade; e esta comparação é válida, não se apresse a dizer-me que a primeira depende do movimento da nossa vontade. Se o fizer, então nunca o viveu. Descobri que a palavra caiu numa cadeia de acontecimentos inexorável! Até me passou pela cabeça memorizá-la para a voltar a escrever, quando as correntes se acalmassem, mas não! Não e não! Nem me lembro da palavra, sei que o dicionário já não a tem, como qualquer dia perderá outras, e até verá novas serem-lhe escritas.
É terrível, terrível, meu caro perceber que muito passa sem o nosso controlo, mesmo o que a priori pareceria resultado de um esforço volitivo. Terrível também o desespero de não lhe percebermos o rumo.

hf
(fotografia: Chema Madoz)