25 de janeiro de 2009


Não deixes morrer a bailarina, ouvia-se da rua. Talvez a ironia, mas ninguém lhe era indiferente.
Dentro de casa, à semelhança do que se passava em tantas outras, a azáfama. Daquelas que alimentaria a memória por muitos anos, com pormenores de roupas a cheirar a naftalina, e sapatos a brilhar de lustro. Uma dessas coisas em família que havia sido planeada com sobeja antecedência. Semanas antes, o Pai já havia conversado sobre este acontecimento durante o jantar. As conversas repetiram-se durantes muitas outras refeições. Trocaram-se sorrisos cúmplices entre os mais velhos, mas para Fernando, o pequeno, ainda era um mistério. Às vezes, adormecia a pensar na beleza daquela bailarina, usando a imagem de um qualquer livro infantil de cuja memória retinha uma figura feminina vestida de cor de rosa e com uma varinha de condão.

Chegado o dia, todos haviam esquecido os dias que tiveram de esperar desde que foi anunciada a presença da bailarina na cidade. Chegara o momento de se preparem. Havia que ser pontual. Podia estar uma fila enorme. Não te lembras como foi da outra vez? Não, jantamos em casa. Poucos podiam jantar num restaurante daqueles.
Finalmente, sairam, estranhando a beleza aprumada de cada um e conheceram, então, a bailarina.
Não deixem morrer a bailarina! - ouviu-se uma vez mais.

(Rafal Milach)

22 de janeiro de 2009


Muitos? Nunca são muitos. Sabe sempre a pouco esta vida. Quando se é pequeno, nem se sabe o que é a vida. Vive-se por viver.

Crescemos e aprendemos a lutar contra uma vida que não é a nossa, a desafiar o destino e a dizer coisas como oxalá nunca o tivéssemos vivido. Desafiamos a vida porque a sabemos nossa e a temos num ponto que nada faz perceber que a podemos perder de facto. Ainda assim, entre guerras e revoltas, lá vamos vislumbrando que sabe bem viver, mas ainda custa.

Lá vem o tempo, em que as cartas se esgotam e o jogo se estreita em possibilidades. Os olhos pesam-nos e vemo-los presos à vida que se esgota.

E depois há o morrer.


Mas que farias tu se tivesses desde cedo a real ideia de que a vida é finita? - Paulo testava a sua imunidade ao discurso cansado de Filipa.


Teria lutado numa pressão maior para me entregar a esta vida todos os dias. Ter-me-ia desfeito e refeito em cada sonho e saberia ter-me vivido. Ou talvez não tivesse feito nada. Bem sabes, são coisas que me saem pela boca em momentos assim.
(fátima mendonça)

16 de janeiro de 2009

Amores (im)perfeitos


1. Houve um paixão e um compasso de espera num relógio que não obedeceu à pressa de um coração apaixonado.
Não houve papel numa apaixonada carta de amor, mas a paixão desenhou-se também em letras num monitor. Sem originalidade, José escreveu o que todos escrevem quando se apaixonam e o tentam negar.

2. Era um amor pequeno, desses que vem de um pacote engraçado que reúne dois corações vagabundos. Não se amavam, mas numa pressa para quebrar a solidão em que viviam, encostaram e encontram uma agitação mais calma na presença um do outro.

3. Recusada a ser iluminada por uma vela comum, Ana recuperava dos estragos de uma paixão não correspondida no reflexo do espelho, que lhe devolvia o gosto por si mesma. Em cada gesto, a recompensa e a promessa de que ficaria sempre com o que o espelho lhe devolveu.
(Roy Lichtenstein)

8 de janeiro de 2009

(in)certa


Ouvi-lhe os lamentos, os risos, as lágrimas. Ouviu tudo. Num só gesto, depois de uma pausa dramática, ao mesmo tempo que queimava o último cigarro, encetou:

Rita, a vida é de uma simplicidade extrema. Tão simples que chega a ser circular na sua forma. É redundante não só em relação a ti mesma, mas também em relação a todos os outros. Não esperes diferenças tão absolutas nas pessoas e nas situações. Não as encontrarás! Não me tomes a mal, mas custa-me ver a tua agitação numa vida, cujo único fim é tão igual a todos: morrer.
Rita pouco mais disse. Havia qualquer coisa naquelas palavras que soava a verdade e tudo que fugia disso, Rita, entendeu-o como desgosto de uma alma cansada, que não queria ser contrariada.
(graça morais)

4 de janeiro de 2009


Num único grito de loucura, Rita apoderou-se da realidade circular da sua vida.

Caíram certezas até então válidas, caíram preconceitos e generalizações, caiu Rita como até àquele momento se queria crer.

Caiu tão certa quando ouviu aquele grito do coração denunciando que nem tudo estava ganho ou perdido, e aquele órgão mantinha razões para bater numa irracionalidade constante.

Demolida a edificação, Rita tinha de esperar pela reconstrução de uma vida, em que tinha agora de incorporar a circularidade da mesma e que, apesar de tudo, ainda se encontrava à procura.


(J. Pollock)

2 de janeiro de 2009

Vazio(s)




Há algo na vida que me escapa, que me foge e me faz correr para os teus olhos e afastar dos meus e dos de tantos outros.


Há sonhos que brotam em instantes pintados de mania e se desfazem em lágrimas de derrota do meu ego.


Há sempre algo que se me escapa e esta dor de não me ter.




Rita encontrou as palavras do seu vazio.


(Martin Kippenberg)