15 de março de 2006

Carta aberta a um jovem, enquanto puto

Caríssimo:

Constou-me há pouco que Vossa Excelência não tem ideais... Que anda ocupado com afazeres mundanos, que, desde tenra idade, o ocupam sobremodo. Deixou de os ter quando, numa esquina mal frequentada, se perdeu de amores por uma adolescência tardia, que o inundou até tarde na década dos vinte... Tenho pena...

A vida corre-lhe de feição, sem ralações, ocupado que está a gozar as conquistas de outros. Nada o preocupa, não pensa no mundo, gravita sem anseios... "Sociedade" é palavra desconhecida, derivada talvez do "social", que anda a par das festas bem frequentadas. "Pobreza" vem de "pobre", que são os habitantes de um país de terceiro mundo (cujo nome te esforças por recordar), longuínquo demais para abafar o cheiro do perfume da moda... "Reflexão" vem do "reflectir", fenómeno indispensável no mirar do espelho, religioso ritual saturnino...

Tenho pena que o menino jovem só cresça quando convém, que resolva militantemente que os ideais são bafientos e decrépitos, que não ouça quando a Democracia Representativa chame... Tenho pena que fique em casa em dias de eleições.

As quimeras de outros carregam nos ombros o mundo de hoje. O teu mundo, menino jovem, está cheio de interrogações não pensadas. Os ideais são plena aspiração do espírito... O que dizer de ti? O tua sociedade (vá lá, procura que hás-de encontrar significado) vai oca... vazia que está de perfeição idealizada, preocupado que andas com aspirar por nada...

Cordialmente

S.Maria

14 de março de 2006

Momentos








Cai a noite devagarinho.
Joana chora e o pai sozinho.

O que vêm os olhos da minha vida?
Por onde caminha o que perdi?







O globo que nos separa tornou-te pesado no meu coração. Ainda desenho as rotinas dos teus penares, mas já não as sinto. Adivinho o teu pensamento e quero esquecer que pensas em mim.
Parti e vejo-me morrer.






Ou talvez não… Talvez conheças páginas de um livro que nunca li e já saibas tudo. Saibas que não há perder, mas sim deixar o sol seguir-se à lua. Talvez conheças como se calam as lágrimas da saudade. Oh! Tomara!


Quebrou-se. Não voltará.

Percebi bem quando o metro deixou te deixou de alcançar.






helder filipe

Brisa

Brisa

No ar sente-se um cheiro constante. Deixa-nos envolvidos sem nos prender. Ouve-se um embalar lento, ritmado, constante. O céu azul ponteado por pequenos farrapos de nuvens... E continua -se a ouvir o ritmo agora associado a uma brisa perene, omnipresente que nos afaga como uma mãe embala o filho. Ali no cimo da praia está um homem como tantos outros. Só, acompanhado, perdido achando-se...
Escreve lentamente, ao ritmo que o mar dá na sua cadência, afagado ainda pelo roar lento quase inaudível da omnipresença.
Levanta o seu olhar. No céu estão várias gaivotas rodopiando sobre si, nos seu contínuo afazer ditado pela sua natureza. Ao longe um casal namora, talvez influenciado pela perenidade que a brisa conduz ele agora revela a realidade do seu amor, e o homem que escreve volta novamente a sua atenção às suas folhas e ao seu lápis. A alguns metros dali, num carro está só, outro homem. Tem o olhar fechado, nos olhos verdes a profundidade mariana e pacífica de uma vida sofrida. A escrita prossegue... O papagaio caiu, a criança que praticava as façanhas drumondianas grita de desconsolo, o seu pai com toda a perenedidade e o ritmo que a idade lhe confere, volta a pôr no ar a frágil aeronave e acalma o filho... No papel ganha forma algo:

Um fim
que se procura,
um desejo
que se alimenta
num ser
que ainda não é

Um caminho
que se alarga
um peregrinar
que não se esgota
num descobrir
que cada dia tens uma nova face

O homem escreve. No papel azul estão apenas algumas palavras, que na sua simplicidade mudarão o rumo de uma vida. No ar propagado pelas ondas de ar feito as estações climáticas vivaldianas escorrem a chuva invernal.
Outro homem leu as palavras escritas. Nele o resultado foi imediato, como as primeiras enxurradas de Inverno, o seu mundo acabou com o diagnóstico ali sentenciado... Tudo aquilo que gostava de fazer acabará. Amavelmente pediu para fechar a janela devido à brisa.

O homem está agora num restaurante. O ruído desorganizado, de várias dezenas de clientes a discursarem sobre tudo, envolve-o: as aulas correm bem, ontem tive uma reunião com o chefe, amo-te, a 'vó 'tá pior, 'tou sim o papel que tens que trazer é o azul, para mim pode ser frango estufado, podia-me trazer a conta faz favor. Mas a sua atenção está apenas focada naquela mulher que está à sua frente, tal como ela noutros tempos tinha estado em reciprocidade na praia. Agora ela diz-lhe que é o fim, as coisas já não são iguais, a novidade terminou. Tudo é mais simples se acabassem... O mundo desaba novamente como o caminhar já não fizesse sentido...

Escrevo rápido nervosamente já por várias vezes alterei o que primeiro tinha escrito risco uma e outra vez. Paro releio reescrevo tiro as meias palavras ponho outras preparo o instrumento que me levará ao mais baixo patamar dantesco ligo o aparelho de música. É tudo frenético impensado inimaginado desligado da realidade que até aqui vivi. Ponho a rodar a sétima sinfonia escrita pelo bonense. A música arranca. Chega ao segundo andamento. A cadência começa lentamente, lentamente, piano depois cresce lentamente, torna-se mais forte, toda a orquestra se vê envolvida depois da estafeta entre cordas e sopros, todo o ambiente está imersa, a sua cabeça ausenta-se momentaneamente subiu patamares, quando regressa ao seu mundo o tema inicial já saiu e já voltou com nova face. A sua também está diferente, os olhos estão marianamente pacíficos. As coisas passam-se mais rápido sacadicamente move a sua mão acerta pega no revólver encosta-o à sua fronte encolhe o indicador direito o segundo andamento terminou o corpo caiu sobre o papel nervosamente escrito cujo peso era suportado por um outro, azul. O terceiro andamento começa. Ali, já só o ramo de gardénias brancas se move ainda impulsionada pela brisa perene e omnipresente que recebe nos seus braços a nova realidade.

Foi um fim.
Um fim de dia. Ali no quarto, desfolha o jornal, as notícias quase sempre trágicas que alimentam esse estômago cerebral sedento das desgraças alheias, a novela dos amores e desamores que como começam acabam, as novas descobertas científicas que remudam as mudanças de destino que o anterior desconhecimento impunha, o concurso de fotos ganho por uma estranha imagem de uma praia semideserta com um casal, um pai e seu filho, um velho sentado e um carro próximo dele.
Parou para pensar, em como a vida muda tão rápido, como o interior pode ser alterado num constante crescer assente no passado olhando o futuro, parou a brisa fez entrar pela janela uma folha azul gasta pelo tempo. Levantou-se, pegou nela e leu:

Um fim
desejado
Alimentado em si
no seu ser.

Num caminho
complexo,
feito em parceria,
com um vento perene e omnipresente.


Luís Fernando

CARTA

Valparaíso, 30 de Março de 2006-02-05


Pai,

Como já deves ter percebido escrevo de Valparaíso. É verdade, já cheguei ao Chile!! A última vez que escrevi estava em Fortaleza, desde então muito aconteceu…
Para cá chegar, viajei por terra e por mar, aproveitei boleias de camionistas, apanhei longas carreiras de autocarros e andei um pouquito a pé (para aí uns 500 km). Mas está a valer a pena. O Mundo é um poço de aventuras, um livro de conhecimentos, um filme de culturas diferentes, tudo reunido num grande teatro, que é esta vida em que nos encontramos.
A verdade, é que para poupar algum dinheiro aproveitei para atravessar o Brasil à custa de boleias, ou a pé. Com isso, poupei uma “pipa de massa” ao mesmo tempo, que pude viajar com maior segurança porque a inconstância dos banhos, e a facilidade com que se adquire o sotaque brasileiro permitiu-me passar diversas vezes apenas por mais um sem terra a caminho da grande cidade… Por outro lado, esse mesmo aspecto dificultou-me sempre a vida quando cheguei às cidades e tinha de procurar um lugar mais limpinho para pernoitar. Nada que não se resolvesse com recurso com uns reiais à vista… Assim, conheci Manaus, parte da Amazónia, o Amazonas (de facto uma das paragens foi no meio de um acampamento índio), Brasília, São Paulo, Rio, Porto Alegre, Foz do Iguaçu, até chegar à Argentina.
Aqui a falta de dinheiro aguçou o espírito e arranjei uns trabalhitos. Em Buenos Aires, trabalhei na ópera a vender bilhetes e a encaminhar os melómanos para os seus respectivos lugares ao mesmo tempo a que assisti a várias representações desde a Flauta do Mozart, ao Holandês do Wagner ou o Barbeiro do Rossini. Pelo meio aproveitava os dias para limpar as latrinas de um clube de tango onde diz o dono à boca cheia (o que eu duvido seriamente) o Piazzolla começou a carreira.
Após angariar alguns trocos, visitei o outro lado do Rio da Prata: Montevideu.
Aí parei um pouco. Seguindo o teu conselho de viver cada dia como se fosse o último e cada segundo como se fosse o primeiro, perdi-me. Acho que por momentos pensei ter encontrado o meu grande amor. Infelizmente foi apenas mais uma paixão (que enquanto durou foi realmente bom) e depois de um mês sentindo-me como tudo aquilo que limpei no clube de Buenos Aires, deixei o Uruguai. As mulheres sul americanas, têm aquilo que não dá para descrever, é a maneira como falam, andam, sorriem, olham, eu sei lá...
Tudo é diferente neste mundo, a miséria é enorme e ao lado de uma favela cresce um condomínio fechado com segurança à porta. Mas, mesmo com toda esta pobreza é impossível não reparar a alegria com que se empenham no dia-a-dia, e a forma alegre como olham para o muito que já possuem.
Segui depois em autocarro pelas Pampas, atravessei os Andes. Aproveitei para fazer algum turismo de montanha e subi até meio do Aconcágua, ou melhor até onde o mal da montanha deixou…
Depois dessa aventura cheguei a Valparaíso e agora é tempo de gozar a praia no oceano Pacífico e começar a adaptar-me às águas deste oceano.
Este é o momento para agradecer à mãe tudo o que me ensinou em relação a estar na cozinha e a tirar o melhor partido dela. Graças a isso, arranjei um trabalho como ajudante de cozinha num cargueiro que vai partir amanhã. Finalmente vou quase chegar ao Pólo Sul (primeira paragem em Tierra del Fuego), acho que vai dar para sentir o frio… Depois seguiremos em direcção a Wellington na Nova Zelândia onde deixarei o navio. Pelo meio paragens nas Galápagos, ilha da Páscoa e Tahiti. Belo cruzeiro…
Antes de terminar quero dizer que as saudades cercam-me todos os dias. A solidão é sempre uma constante embora envolvido por tanta gente e com tantos contactos já estabelecidos (já comprei outra agenda para guardar as moradas, telefones e os mails de tantos conhecidos). Procuro sempre não me esquecer de todos os teus conselhos, mas isso por vezes não chega. Olho sempre para traz como que a ver um filme de viagem, não esta mas toda aquela que fiz pela vida, e lá encontro o alimento e o conhecimento necessário para enfrentar os obstáculos que tenho pela frente. É como se tudo fosse um fio condutor que por vezes, se cruza fazendo um nó que não temos que romper mas antes apertar mais, e que permite a chegada de um outro fio para a ligação ser mais longa e segura ou simplesmente abre a hipótese de novos caminhos serem estabelecidos.
Bem deixemo-nos de filosofias (é o que faz estar só), mando beijinhos para todos aí em casa, mais que tudo quero que saibam que está tudo bem pese embora os breves assaltos de solidão. Junto envio algumas das muitas fotos que tenho tirado, embora não seja possível ver já tornei a fazer a barba, por isso não se assustem e acreditem sou mesmo eu…
Antes de terminar queria dar os parabéns à Ana pelo aniversário (não me esqueci, mas no meio da Amazónia não há telefones, e depois não fazia sentido com tanta coisa para dizer e tão pouco tempo); agradecer a encomenda que a mãe mandou para o Rio (ainda estava muito saborosa) e avisar que espero estar na Nova Zelândia daqui a três meses (mais semana, menos semana) e ficarei por lá um mesito, portanto: mãe não te coíbas de mandar outro.
Bem, agora é de vez, um grande abraço e um beijo cheio de contradição por querer estar aí, mas estar tão bem por aqui estar.


João





Luís Fernando