12 de novembro de 2009


O amor prendeu-me como se prendem os corpos nas covas num dia de santos: num lugar fixo, onde me sei, e onde, ainda que não me vejas, tu me sabes encontrar.

Assim cantava Rita no dia negro de Novembro.

O amor prendeu-me, prendeu-me numa canção de abril nostálgica, fria e já sem significado, onde me agito entre letras e acordes de poeta morto à espera de uma alma com memória que me saiba cantar.

E ando presa, acorrentada... E que venham peritos dizerem-me que as correntes sou eu que as crio com os vícios do meu agir. E que venham esses inúteis. Para que os quero? Espelhos, não me faltam e conheço-me tão bem... Quero quem mas arranque! Mas, para isso, acaba-se-lhes rápido a perícia...
E o riso! O eterno riso que assombrava o mundo tão pequeno diante daquele gigante.

(paula rego)

29 de outubro de 2009


António desfinhava-se com mais um desses dias em que não se encontra a paz em nenhum lugar. A casa de Rita estava fria, um novo amor prendia-a a um encontro, imagine-se, no centro comercial. Além de Rita, tudo era sempre mais frio, e António não estava motivado a ultrapassar barreiras de gelo, construidas ao longo dos anos. Estava só. Esperaria Rita chegar a casa e logo lhe contaria como às vezes a vida o desfaz e se revolta numa luta inútil.
Rita sabia como ninguém acolher o desespero dos outros, dando, com o seu exemplo, um grito ao mundo: é esta a forma como se deve receber um amigo, quando ele precisa de nós; um amigo ou qualquer pessoa, afinal somos todos humanos.
Assim, António decidiu esperar. A vida ri-se da ironia. Minutos depois de António pensar em telefonar a Rita, o telefone dele tocou: Rita. Os amores de Rita! Poucas perguntas, António havia aprendido que a sua amiga precisava de ser ouvida e, tudo que lhe fugisse do contexto, seria demais. Era incrível como Rita sempre se entregava a estes novos amores. Em cada um, a esperança de ser amada e ser feliz.
A António, Rita poderia dizer que conhecia Pierre há menos de um dia. Não tinha de inventar que o havia conhecido havia muitos meses e daí o seu estado. Só António poderia compreender que se pode amar num segundo, quando se vive tão sequioso de amor. Só ele se esqueceria de si mesmo, a uma palavra de Rita, que, nunca alheia ao outro, lhe perguntaria depois do lamento: E tu como estás?

(barbara kruger)

9 de setembro de 2009


Um dias destes pego em mim e voo. Voo para onde os sonhos nao me prendem. Voo para onde a alegria nao faz falta e a tristeza nao incomoda.
Era o choro do pobre que, ainda que contaminado por vinho podre, nao deixava de lhe ecoar a alma.

25 de agosto de 2009


Embalou-se na vida como as palavras conhecessem-se então novo sentido e desfez um espelho em gargallhadas estridentes, sem medo de nenhuma praga de sete anos de azar.
As escadas foram poucas, a porta pequena e silenciosa, o carro rápido no arranque mas cuidadoso na condução urbana. Ainda assim, o momento foi dramático:

Rita mudara. E nada mais voltaria a ser como era, por mais voltas que o mundo pudesse dar.

(Kenneth Noland)

30 de maio de 2009

Era a noite mais fria de um Verão intenso. Sim, o Verão também tem noites frias, e há mesmo dias em que o sol não aquece. Assim, era unânime, aquela era a noite mais fria desse Verão. Mas não para todos. Tal como no Inverno, há quem sinta o frio de modo diferente, arriscando-se mesmo a dizer que o frio é psicológico. Seja lá como for, Simão sinta o frio como imaginava que os velhos de ossos frágeis o sentissem. Sentia o frio do modo que achava tão seu, porque não era velho e nem tinha ossos frágeis, houvesse um aparelho que afirmasse isso mesmo e ele veria com um sorriso a sua tristeza reconhecida num modo especial e único para sentir o frio. 

Não havia nenhum aparelho e, se usasse um motor de busca como o Google, logo perceberia que muitos se queixavam do mesmo. Irritado, pela falta de originalidade, abafava-se num cobertor de lã, que lhe confirmava a sua própria necessidade, até que Rita chegou. Com um cobertor de lã numa noite tão quente?! Já sei. Mal de amores, não? E o abraço que afastou aquele cobertor

27 de maio de 2009


A noite cansara-se daquele choro e os casais riam-se das rugas fáceis de quem se rezinga com a vida, e o relógio? O relógio, esse, olhava todos com a indiferença de quem se acostumou a ver passar o tempo, ver nascer, crescer e morrer vontades que se juraram eternas. O choro não lhe perturbava o seu ritmo, e era com o mesmo desprezo que ouvia os risos e via as rugas dos contrariados. 
Nada, ainda assim, conseguia tingir aqueles gestos de inutilidade. Saiam com a força de quem sabe que nasce por uma razão, e não recuavam ante a racionalidade dos que os rodeavam. 

(James Ensor)

29 de abril de 2009


Não se lembrava quando começara a pecar, mas conhecia aquele sabor havia muito tempo e tinha já encontrado muitos modos de conviver razoavelmente com ele, sem explodir em raiva e em lágrimas de arrependimento cada vez que memórias atrevidamente lhe atravessavam a consciência. Talvez fosse quando descobriu que pagara apenas cinquenta escudos por um chocolate que custava mais de duzentos, que bem lhe soubera, e como calara um superego exigente de tijolo católico e com tinta de velha, com a desculpa que o preço estava mal marcado, e, como se essa não fosse justa, o valor do chocolate estava bem mais do que inflacionado e havia tanto coisa em que o supermercado poderia enganar-se, pior, se o erro fosse ao contrário, eles nunca diriam nada. Assim se calava, mas nunca lhe sairia da memória, ainda que, hoje, à luz do direito do consumidor, Paulo estava correcto. O preço estava mal marcado. Quando a rapariga da caixa lhe perguntou o preço, ele disse honestamente cinquenta escudos, por ser exactamente o preço que vira marcado e por isso decidido comprar aquilo; só mais tarde, talvez numa próxima ida ao supermercado se apercebeu do engano, mas nem por isso o desfez e nesse tempo, pouco sabia de direito de consumidor. Era esse o peso, que ainda que perdoado, fazia impressão numa memória.
Talvez fosse mais cedo, mas mais tarde viria a dizer que nenhuma decisão é isenta de julgamento moral e que teria de viver com mais este pecado. 

(Martin Kippenberg)

24 de abril de 2009


Havia uma canção, dessas que fica por um tempo no ouvido a lembrar como nos podemos prender facilmente à novidade. 
Havia um casal, desses que atrevidamente exibe uma felicidade pornográfica de quem encontrou a paridade e a esfrega agora nos olhos de todos.
Havia gente, muita, vestida  como que por um mecanismo cego de atribuição de roupa a uma multidão, sem critério, talvez com a excepção do conforto.

Do seio daquele grupo, brotavam os sorrisos mais assustadores, seguranças que se recusavam a admitir a existência de gente infeliz ou de mal com a vida, ninguém nos há-de perturbar a nossa pacata felicidade, a cada gesto, a mesma mensagem, em jeito de protesto de quem se encontrou e se recusa a ver abalada a sua estabilidade. 

Rita, atenta, entrou, como saiu, sem uma palavra, com a promessa de tentar esquecer aquela realidade. 

(Louise Bourgeois, Nest)

4 de abril de 2009


Eram pedaços, pedaços pequenos de uma vida que se desfaziam em minúsculos fragmentos cortantes. Caiam como caiem nos sonhos os espelhos partidos e sentiam-se também como estes e com o azar que transportam. 
Cada um, uma memória, um entrelaçar de histórias a insistir manter preso aquele corpo. 
Havia momentos em que Filipa voava, gritava em som de gaivota no céu azul, desenhando trajectórias quase de pura liberdade. Noutros como este, a ameaça tornava-se no pior dos pesadelos, por se tão real e cruel. 
Uma vida desfeita em lâminas de um espelho partido. Em cada farpa, o reflexo de tudo o que foi. Em cada corte, o vermelho a lembrar que não podemos fugir de nós próprios. Era Filipa em convulsão exagerada por mais um dia que lhe fugia das mãos. 

Dan Graham

9 de março de 2009

Queimaram-me o sonho mais bonito que tive numa manhã de inverno.


Não, o sonho não tinha tempo, foi queimado numa dessa manhãs em que o gelo brilha como orvalho triunfante em seu apogeu. 
Acordei e apercebi-me daquele odor a queimado. Também aquele sonho não se concretizaria. Era talvez o último do género. De que género? Do género desses que conservam a ingenuidade de criança: se acreditarmos muito, talvez aconteça! 
Os sonhos acontecem por querermos muito. Aproveitamos uma pestana caída e desejamos fortemente. Nao o podemos é contar a ninguém. Contar estraga. É um acordo que fazemos com quem manda. Se nos portamos bem e sobretudo se nos mantivermos em silêncio, para não abrirmos precedentes,  tornará-se-á realidade. Esperamos, com essaa certeza porque estamos a cumprir as regras e é assim que se joga.  Só não sabemos quando, o que nos faz viver uns quantos falsos alarmes. Meros ensaios, porque temos tudo planeado. Acreditamos tanto, tanto, tanto; é preciso e o mundo é mágico. 

Pois foi, queimado e morto. Agora virão outros sonhos, mas nenhum outro como aquele. 

Rita, num monólogo.

(A. Jawlensky)

24 de fevereiro de 2009


Fez promessas, dessas quando se vê o fundo como o nosso chão e nada parece poder ser pior. Inocentes, tal como um filme, depressa nos arrependemos dessa certeza. Tudo pode ser sempre ainda pior. 

Rita prometeu o que todos prometem quando caem: não voltar a cair!

As palavras foram fortes, mas elas sabia-as tão inúteis. Como pedir a si própria para não voltar a cair? Acaso caira porque queria? Mas, por que se entregava de um modo extremo a um mundo que era indiferente à paixão de quem vive contra um relógio?
E a boca fugiu-lhe para a outras palavras:  O desespero faz-me caminhar

Não. Não se poderia enganar a si mesma. 
Era ela própria, que se levantava depois de uma queda com a naturalidade de quem não sabe mais fazer senão se levantar depois da derrota. 
Era ela própria, também, que sabia que esta queda tinha sido maior e estava longe de estar de pé.
Era ela própria que sabia que quanto mais baixo, pior era aquela queda.

(paula rego)

9 de fevereiro de 2009


No final de tudo, não precisamos de novas histórias. Não. Contem-nos as mesmas de sempre. Arranjem nomes diferentes, para serem criativos, mas damos o nosso mundo por um beijo no final e uns quantos heróis. 
E moeu naquilo a noite inteira. 
Gonçalo, por seu lado, não parava de criticar o argumento. Enquanto, o outro repetia a mesma verdade. 
Encontrar a verdade tem desta coisas, dá-nos certezas e devolve-nos texto e protagonismo que pensavamos esquecido. Naquela hora, Manuel daria o seu mundo também por um grande palco, onde todos ouvissem que ele conseguia perceber a natureza humana, e lhe dessem o reconhecimento. 
Não precisamos de novas histórias.

(Slumdog millionaire.)

25 de janeiro de 2009


Não deixes morrer a bailarina, ouvia-se da rua. Talvez a ironia, mas ninguém lhe era indiferente.
Dentro de casa, à semelhança do que se passava em tantas outras, a azáfama. Daquelas que alimentaria a memória por muitos anos, com pormenores de roupas a cheirar a naftalina, e sapatos a brilhar de lustro. Uma dessas coisas em família que havia sido planeada com sobeja antecedência. Semanas antes, o Pai já havia conversado sobre este acontecimento durante o jantar. As conversas repetiram-se durantes muitas outras refeições. Trocaram-se sorrisos cúmplices entre os mais velhos, mas para Fernando, o pequeno, ainda era um mistério. Às vezes, adormecia a pensar na beleza daquela bailarina, usando a imagem de um qualquer livro infantil de cuja memória retinha uma figura feminina vestida de cor de rosa e com uma varinha de condão.

Chegado o dia, todos haviam esquecido os dias que tiveram de esperar desde que foi anunciada a presença da bailarina na cidade. Chegara o momento de se preparem. Havia que ser pontual. Podia estar uma fila enorme. Não te lembras como foi da outra vez? Não, jantamos em casa. Poucos podiam jantar num restaurante daqueles.
Finalmente, sairam, estranhando a beleza aprumada de cada um e conheceram, então, a bailarina.
Não deixem morrer a bailarina! - ouviu-se uma vez mais.

(Rafal Milach)

22 de janeiro de 2009


Muitos? Nunca são muitos. Sabe sempre a pouco esta vida. Quando se é pequeno, nem se sabe o que é a vida. Vive-se por viver.

Crescemos e aprendemos a lutar contra uma vida que não é a nossa, a desafiar o destino e a dizer coisas como oxalá nunca o tivéssemos vivido. Desafiamos a vida porque a sabemos nossa e a temos num ponto que nada faz perceber que a podemos perder de facto. Ainda assim, entre guerras e revoltas, lá vamos vislumbrando que sabe bem viver, mas ainda custa.

Lá vem o tempo, em que as cartas se esgotam e o jogo se estreita em possibilidades. Os olhos pesam-nos e vemo-los presos à vida que se esgota.

E depois há o morrer.


Mas que farias tu se tivesses desde cedo a real ideia de que a vida é finita? - Paulo testava a sua imunidade ao discurso cansado de Filipa.


Teria lutado numa pressão maior para me entregar a esta vida todos os dias. Ter-me-ia desfeito e refeito em cada sonho e saberia ter-me vivido. Ou talvez não tivesse feito nada. Bem sabes, são coisas que me saem pela boca em momentos assim.
(fátima mendonça)

16 de janeiro de 2009

Amores (im)perfeitos


1. Houve um paixão e um compasso de espera num relógio que não obedeceu à pressa de um coração apaixonado.
Não houve papel numa apaixonada carta de amor, mas a paixão desenhou-se também em letras num monitor. Sem originalidade, José escreveu o que todos escrevem quando se apaixonam e o tentam negar.

2. Era um amor pequeno, desses que vem de um pacote engraçado que reúne dois corações vagabundos. Não se amavam, mas numa pressa para quebrar a solidão em que viviam, encostaram e encontram uma agitação mais calma na presença um do outro.

3. Recusada a ser iluminada por uma vela comum, Ana recuperava dos estragos de uma paixão não correspondida no reflexo do espelho, que lhe devolvia o gosto por si mesma. Em cada gesto, a recompensa e a promessa de que ficaria sempre com o que o espelho lhe devolveu.
(Roy Lichtenstein)

8 de janeiro de 2009

(in)certa


Ouvi-lhe os lamentos, os risos, as lágrimas. Ouviu tudo. Num só gesto, depois de uma pausa dramática, ao mesmo tempo que queimava o último cigarro, encetou:

Rita, a vida é de uma simplicidade extrema. Tão simples que chega a ser circular na sua forma. É redundante não só em relação a ti mesma, mas também em relação a todos os outros. Não esperes diferenças tão absolutas nas pessoas e nas situações. Não as encontrarás! Não me tomes a mal, mas custa-me ver a tua agitação numa vida, cujo único fim é tão igual a todos: morrer.
Rita pouco mais disse. Havia qualquer coisa naquelas palavras que soava a verdade e tudo que fugia disso, Rita, entendeu-o como desgosto de uma alma cansada, que não queria ser contrariada.
(graça morais)

4 de janeiro de 2009


Num único grito de loucura, Rita apoderou-se da realidade circular da sua vida.

Caíram certezas até então válidas, caíram preconceitos e generalizações, caiu Rita como até àquele momento se queria crer.

Caiu tão certa quando ouviu aquele grito do coração denunciando que nem tudo estava ganho ou perdido, e aquele órgão mantinha razões para bater numa irracionalidade constante.

Demolida a edificação, Rita tinha de esperar pela reconstrução de uma vida, em que tinha agora de incorporar a circularidade da mesma e que, apesar de tudo, ainda se encontrava à procura.


(J. Pollock)

2 de janeiro de 2009

Vazio(s)




Há algo na vida que me escapa, que me foge e me faz correr para os teus olhos e afastar dos meus e dos de tantos outros.


Há sonhos que brotam em instantes pintados de mania e se desfazem em lágrimas de derrota do meu ego.


Há sempre algo que se me escapa e esta dor de não me ter.




Rita encontrou as palavras do seu vazio.


(Martin Kippenberg)