31 de agosto de 2008


Talvez nunca o ouvisses, mas Ana disse-o claramente. Tal como aqueles cometas que só aparecem de cem em cem anos, aquele tinha sido um acontecimento único e irrepetível.

Ana. De todos, menos de Ana, se esperaria tamanha afirmação.
Há coisas que só se deveriam dizer no último sopro de vida, porque afinal todos temos presente, mas sobretudo ela, o que um calendário ou até um relógio podem fazer a uma vida que se diz feliz.
Há coisas que só se deveriam dizer quando tivéssemos provas irrefutáveis e inabaláveis de que não vamos ser atraiçoados.
Há palavras que têm significados que ardem e que aleijam os que delas fazem um uso inadvertido.

Ainda assim
sem livros, árvores, ou filhos,
sem a quem chamar amor de vida, ou se embalar em noites de insónia,
com um grande nada e de mãos vazias carregando uns sacos de papel,

Ana desafiou os sonhos e quem escreve sobre eles, e, num raio de luz que rasgou o mundo, gritou ser feliz.

27 de agosto de 2008

E falou-lhe de um amor estranho.


Houve um não, que humedeceu olhos, quase até os seus.
Houve uma carta que lhe prometeu ser capaz de ultrapassar a dureza da resposta e devotar-se a um amor eterno.
Lida, lembrada e amarrotada, presa a um livro, vezes demais talvez para quem foi tão seguro no seu não. Ali permanecia de reserva, mas por quanto tempo?
Por quanto tempo seria capaz de prender um amor que não era o seu?
Rui começava a recear a perda de validade daquele precioso documento, ainda assim releu-o uma vez mais.
(Australian Post)

23 de agosto de 2008




É uma imagem? É uma imagem? É uma imagem que vale mil palavras?
Continuava Ana.


Uma imagem vale mil palavras.
Ouviam-se os risos. Paulo cúmplice sorria.


Quanto valerá o teu riso?
Pensou alto, talvez pouco.
E então o teu sorriso? Esse valerá mais?


Meu amor, o meu sorriso vale quanto tu quiseres.
Por momentos, pensaram, até mesmo a própria, que Paulo tinha conseguido o silêncio da diva, mas esta proseguiu após uma breve pausa.


E uma lágrima? Quanto vale uma lágrima?
Ouviu-se o silêncio de quem presta atenção.


Quanto vale uma lágrima? E se uma lágrima valer muito, quanto valerão as minhas?
Se eu chorar com muita força, deixo de me sentir?

Paulo permanecia cúmplice num mundo alheio
Estendeu-lhe o abraço de sempre que, também naquela noite, não lhe calou o sofrimento.

(As palavras acabariam por se esgotar horas mais tarde, como folhas rasgadas de um dicionário, que, nem por isso, deixa de existir.
Ana aceitaria o abraço e repousaria o tormento num ombro que não era o seu.
Paulo abandonaria um pedaço do seu coração já com pouca vida: guardado estará o bocado para quem o há-de comer!)

(Marlene Dumas)

19 de agosto de 2008


E depois veio um sorriso que a prendeu, como um daqueles mimosos e atrevidos de uma criança qualquer que não receia sê-lo.

Ana retribui, e, sabes, contava ela a Paulo, eu que até nem tenho muito jeito para esta coisa de sorrisos, sorri mesmo! Como se tivesse significado...

E teve-o. Não o quis admitir a Paulo, sempre tão avesso a deixar-se prender pelos estranhos, mas estava consciente do poder daquele sorriso.

Talvez este nem fosse suficiente ou talvez Ana não seja a mesma, mas já tinha visto antes sorrisos daqueles e sabia bem por que caminhos eram capazes de a conduzir. De qualquer modo, por agora, Ana esforçava-se arduamente por conservar a sensatez e para que este fosse apenas um sorriso lindo.

(barbara kruger)

1 de agosto de 2008

Sublinhados


"E também sou o único que pode recordar aquela vez em que fui desleal com o José Dinis. Andávamos com a tia Maria Elvira no rabisco do milho, cada qual no seu eito, de sacola ao pescoço, a recolher as maçarocas que por desatenção tivessem ficado nas canoilas quando da apanha geral, e eis que vejo uma maçaroca enorme no eito do José Dinis e me calo para ver se ele passava sem dar por ela. Quando, vítima da sua pequena estatura, seguiu adiante, fui eu lá e arranquei-a. A fúria do pobre espoliado era digna de ver-se, mas a tia Maria Elvira e outros mais velhos que estavam perto deram-me razão, ele que a tivesse visto, eu não lha tinha tirado. Estavam enganados. Se eu fosse generoso ter-lhe-ia dado a maçaroca ou então tinha-lhe dito simplesmente: «José Dinis, olha o que está aí à tua frente.» A culpa foi da constante rivalidade em que vivíamos, mas eu suspeito que no dia do Juízo Final, quando se puserem na balança as minhas boas e más acções, será o peso da maçaroca que me precipitará o inferno..."


José Saramago As Pequenas Memórias, 2006
(Graça Morais)

Rita apagou-se no espelho,
caiu nos fragmentos de um reflexo
enquanto esperava pelo tempo
que a devolveria a uma vida

....


Esperar angustia, dói, mas não mata
e a vida corre inexorávelmente
Testemunham os ponteiros de um relógio,
os sinos de uma igreja,
mesmo quando marcam o fim de quem foi.
Testemunham as voltas de um mundo
um sol e uma lua que se beijam sem a tua permissão.


....
Rita espera,
Agita-se
Faz-se louca para se dividir
Relê o livro
Saiu-lhe o grito e nem o ouve...
Conta-lhe
Diz-lhe que tudo virá com o tempo
Tudo o que tiver que vir, claro
.
hf
(a segui)