29 de setembro de 2008


Um coração cansado para amar palpitou duas vezes, não mais, e era já um sinal de vida. Cristina, já pouco hábil para o amor, mas ainda conhecedora daquele bater, duas vezes, como a paridade que todos procuramos, levantou-se e viu-lhe o rosto. Nada mais.
Havia livros, havia regras, que conheceu tão bem, que as escreveria não fossem já terem nascido sedutores semelhantes, mas havia aquele cansaço impregnado que a derrubava, aqueles vícios e teias de que não se conseguia desprender e que a encerravam numa grotesca incompetência para amar.

Demasiado tarde. Saiu como entrou, de mãos vazias, cúmplice com um coração que ironicamente ainda batia no seio do desespero.
(joana salvador)

24 de setembro de 2008

Discursos Imperfeitos


Houve cartas que não escrevi e palavras que nunca disse e nem uma lágrima me corre no rosto por isso. Nada se perdeu, continuava Ana, como se poderia perder? Não houve vitórias, não houve derrotas. Somos muito pequenos, nem todos os actos vão fazer estremecer o mundo, nem mesmo nós próprios.
Talvez abalar o mundo não deva ser a prioridade das acções. Contrapôs o outro, melhor seria se tivesse ficado no silêncio. Todos sabiam que quando botava faladura, Ana não valorizava contraposição, muito menos se gratuita. As opiniões não se discutem, estou a dar a minha, posso estar errada, mas não me importo.
Desta vez, diferente, Ana respondeu: Tens razão, nem todos os nossos actos tem esse objectivo, muito pelo contrário. Percebeu-lhe a estupidez, mas preferiu não deixar-se ferir, estava muito presa aquele texto. Retomou. Posso conviver com essa inutilidade de muitos gestos meus, assim como aqueles que deixei de fazer.
Falou ainda de vidas, de percursos pequenos, condenados de início que, nem por isso, deixam de o ser.
Não devemos esperar muito de uma vida onde não somos os únicos actores. Se este palco fosse só meu...Não conseguiu prosseguir por mais tempo, todas as palavras soavam-lhe ocas e limitou-se ao habitual, tentando fingir que aquele pateta não lhe havia arruinado o discurso.
(lourdes de castro)

22 de setembro de 2008


Acordou com um desagradável odor a vazio, o mesmo em que conseguira vencer a insónia.

Estava tão velha e acabada. Repetia-se em si própria o que ouvira contar a Filipa. Fugir dos que nos trazem tão más notícias. Filipa contou-lhe prontamente, era um misto de admiração e ódio para com a diva. Ana ouviu e, como sempre, ensaio um riso de desprezo, não maior do que o da outra, que regozijava com a má nova.

Chegada a casa, a história era diferente. A mais tinha descoberto três rugas fortes de cada lado dos seus olhos, que há muito a massacravam. Não esperava um Dorian Gray, mas custava-lhe assimilar aquele fardo, pesado demais para quem acreditava ainda não ter começado a viver.

O tempo por ti não passa. Como sempre, tão bonita. Ainda que estes fossem mais frequentes, esfregados em tantas circunstâncias sociais, Ana revia-se com outras estatísticas e o velha e acabada soava-lhe a verdade crua: um coração pobre e cansado numa carcaça que envelhecia precocemente.


(amélia fernandes)

11 de setembro de 2008




Enfrentou as rugas, uma a uma.
Por cada ruga um sonho perdido, ainda lhe saiu a frase, mais poética do que real. Bom seria que assim fosse, eram bem mais os sonhos derrotados do que aqueles riscos na sua face.
Margarida perdera-lhes a conta.
Nascera com o rasgo incrível para sonhar. Caminhava com o brilho dos olhos de quem acredita. Viu-lho José tantas vezes, assim como as em que lhe amparou a frustração.
Viu ela os sonhos, todos e mais alguns, através da câmpanula de vidro onde se agitava. ( Como se houvesse mais alguns que aquela cabeça não se lembrasse... Havia, pois, mas paulatinamente se calaram nesse mesmo mundo em que Margarida se fechou. )
Via-os ela todos os dias quando se investia num mundo que lhe era alheio. Reconhecia-se como ninguém. Eram as suas roupas, as suas frases, os seus amigos... Era ela, no corpo de outra, e de outra, de tantas outras que podiam sorrir.
Margarida recolhia-se naquele espelho, onde tentava integrar a vida frustada naquela cara enrrugada.
Havia duas pernas que sozinhas não podiam andar. Não somos os únicos motores da nossa vida, tentava calar o abalo do ego.
Havia uma vida que não era a sua, mas que tinha que viver. Não nasci para isto, cada um é para o que nasce. A velha Dulce sempre lhe gritava ao ouvido. Cala-te, mulher. Dorme. Amanhã é outro dia.

(paula rego)

4 de setembro de 2008




Rita acordou sobressaltada. Tinha-se visto, de um modo tão claro como só ela o poderia.

Um lençol desbotado a cobrir uma cama onde se debatia sozinha contra a insistência de uma insónia.
Uma almofada inútil no repousar e uma outra igualmente frustrada.

Não houve um abraço, um beijo, uma mão que encontrasse a sua.

Não viu Paulo, o primeiro e único amor da sua vida, não viu Gonçalo, Ricardo ou José, ou qualquer um dos que sucederam.

Apenas a almofada encardida onde se abraçava violentamente num esforço amargo, como todos os que são em vão, para fazer dela gente.


Uma luz fina que atravessava o estore e que denunciava a lua num espelho daquele guarda-roupa.
Esse tão conhecedor dos múltiplos ensaios de Rita para agradar e ser agradada.
Esse que a viu bela como ninguém, ou como ninguém a conseguiu ver.
Esse que amaldiçou os que não tinham os seus olhos.
Esse que a atraiçoava agora e lhe mostrava rugas secas numa cara sem vida.
Que a revelava só e despida, com o prazer de quem assiste ao fim tal como o descrevera.
Que se levantava numa noite cruel e denunciava os pequenos pecados da diva.
Esse, a quem ela tinha dedicado toda a sua vida, tão inutilmente...

O ranger de todas as madeiras sucedeu aos pequenos estalos de uma televisão acabada de desligar, depois um vazio que lhe cortava a alma e a deixava ouvir o palpitar de um coração já cansado para se debater contra mais uma insónia.

Há muitas vidas no mundo e nem todas podem ser pintadas da mesma cor, pensou talvez ainda durante aquele sonho.
(Bartolomeu dos Santos)