29 de abril de 2009


Não se lembrava quando começara a pecar, mas conhecia aquele sabor havia muito tempo e tinha já encontrado muitos modos de conviver razoavelmente com ele, sem explodir em raiva e em lágrimas de arrependimento cada vez que memórias atrevidamente lhe atravessavam a consciência. Talvez fosse quando descobriu que pagara apenas cinquenta escudos por um chocolate que custava mais de duzentos, que bem lhe soubera, e como calara um superego exigente de tijolo católico e com tinta de velha, com a desculpa que o preço estava mal marcado, e, como se essa não fosse justa, o valor do chocolate estava bem mais do que inflacionado e havia tanto coisa em que o supermercado poderia enganar-se, pior, se o erro fosse ao contrário, eles nunca diriam nada. Assim se calava, mas nunca lhe sairia da memória, ainda que, hoje, à luz do direito do consumidor, Paulo estava correcto. O preço estava mal marcado. Quando a rapariga da caixa lhe perguntou o preço, ele disse honestamente cinquenta escudos, por ser exactamente o preço que vira marcado e por isso decidido comprar aquilo; só mais tarde, talvez numa próxima ida ao supermercado se apercebeu do engano, mas nem por isso o desfez e nesse tempo, pouco sabia de direito de consumidor. Era esse o peso, que ainda que perdoado, fazia impressão numa memória.
Talvez fosse mais cedo, mas mais tarde viria a dizer que nenhuma decisão é isenta de julgamento moral e que teria de viver com mais este pecado. 

(Martin Kippenberg)

24 de abril de 2009


Havia uma canção, dessas que fica por um tempo no ouvido a lembrar como nos podemos prender facilmente à novidade. 
Havia um casal, desses que atrevidamente exibe uma felicidade pornográfica de quem encontrou a paridade e a esfrega agora nos olhos de todos.
Havia gente, muita, vestida  como que por um mecanismo cego de atribuição de roupa a uma multidão, sem critério, talvez com a excepção do conforto.

Do seio daquele grupo, brotavam os sorrisos mais assustadores, seguranças que se recusavam a admitir a existência de gente infeliz ou de mal com a vida, ninguém nos há-de perturbar a nossa pacata felicidade, a cada gesto, a mesma mensagem, em jeito de protesto de quem se encontrou e se recusa a ver abalada a sua estabilidade. 

Rita, atenta, entrou, como saiu, sem uma palavra, com a promessa de tentar esquecer aquela realidade. 

(Louise Bourgeois, Nest)

4 de abril de 2009


Eram pedaços, pedaços pequenos de uma vida que se desfaziam em minúsculos fragmentos cortantes. Caiam como caiem nos sonhos os espelhos partidos e sentiam-se também como estes e com o azar que transportam. 
Cada um, uma memória, um entrelaçar de histórias a insistir manter preso aquele corpo. 
Havia momentos em que Filipa voava, gritava em som de gaivota no céu azul, desenhando trajectórias quase de pura liberdade. Noutros como este, a ameaça tornava-se no pior dos pesadelos, por se tão real e cruel. 
Uma vida desfeita em lâminas de um espelho partido. Em cada farpa, o reflexo de tudo o que foi. Em cada corte, o vermelho a lembrar que não podemos fugir de nós próprios. Era Filipa em convulsão exagerada por mais um dia que lhe fugia das mãos. 

Dan Graham