28 de março de 2008

olhos cansados viram uma alma triste

Os meus olhos ou os teus?
Disse que, nessas alturas, sente todas as palavras lhe soam vazias e que não confiava na sua própria voz.
Falou de amores, de penas, de cruzes, de um coração que sofre, disse-me que amava, pediu um abraço, encostou-se e chorou.
Limpou as lágrimas e saiu-se com esta: nem mesmo sei se estas lágrimas são sinceras.
Amanhã, descansarei este corpo e recuperarei os olhos de sempre...


hf


(graça morais)

27 de março de 2008


Deu-lhe tudo e diz que recebeu pouco mais do que nada.

Hesitou no nada, mas ponderada colocou o pouco mais do que nada. Paula detestava dramatismos românticos e fugas a realidade aritmética a que se habituara. Com rigor, poderia dizer que recebeu algo em troca, mas a balança desquilibrava em claro desfavor para com ela. Lançou o desabafo, mas arrependeu-se. Estaria a cair nesse romantismo de que tanto se pretendia afastar? Ainda que houvesse essa possibilidade, continuaria no momento, tentando manter-se alheada de possíveis juizos de valor.

Sabes, não foi desta, também não foi desta que sinto a plena retribuição.

Gonçalo escutava indiferente.

Dói-me a alma sentir que eu faria tudo para que ele ficasse, e ele partiu. Dói-me a alma porque conheço o texto como ninguém, dou as deixas e nada se passa como o que quereria.

Gonçalo sorriu, incapaz de dizer que, embora fizesse o esforço, era evidente a sua incapacidade para compreender aquele desabafo. Pronto, teve de ir embora. E depois? Um sorriso também destrói, e Paula percebeu-o como reprovação.

Deixa lá, são coisas que me passam por esta cabeça depois de dez horas de trabalho.

Nessa altura, Gonçalo adiantou: eu compreendo.

Depois, foi o desejar que a conversa acabasse. Sentiu-se incompreendida, talvez patética.

Por que ainda continuo a querer?

hf

(Joana Salvador)

25 de março de 2008

riso das voltas que a pipa dava




Ainda agora me dá riso as voltas que a pipa dava! E ria-se como uma perdida.
Se dores tinha, daquelas no abdómen por tanto se rir, não parecia, por cada vez se tornava mais poderoso o estridor daquele riso.
Se havia um momento em que se pensava que ia cessar, o engano era imediatamente revelado quando se soltava num daqueles paroxismos nada contagiantes. Repetia a mesma frase, recontrui-a em inúmeros arranjos, trauteava-a como se de canção se tratasse, empenhava notas como se fosse música, mas logo explodia o riso.

Ria alto, tão alto, talvez não o suficiente para preencher o vazio do momento.

hf
(Paula Rego)

18 de março de 2008

Conta-me uma daquelas histórias que te faz sonhar.




Uma história, uma história pequenina ou até maior, que não me importo de te ouvir falar.
Fala-me de uma árvore de ramagem verde, com frutos vermelhos e redondos, onde debica um passaro azul.
Faz-me ver um sol amarelo e pintar-lhe um sorriso grande.
Desenha umas nuvens num céu azul e deixa aparecer o verde quando tocar o amarelo do sol.
Conta-me da casa pequena, com três janelas e uma varanda.
Pinta o fumo branco de uma chaminé alta.

Dá-me um baloiço entre flores mil onde tu e eu vamos rir e pára o relógio.


hf
(fátima mendonça, sem título)

17 de março de 2008


Não quis partir o momento, Paulo ecoou as mesmas palavras que se esvaziaram na boca de Ana. O tempo estava prestes a passar e ele sabia bem que as palavras depressam iriam deixar de ter sentido. Repetiu ainda assim as saudades que tinha, falou muito das que não tinha e das que deixaria de ter. Repetiu um sentimento forte, um do qual já começava a esquecer-se e que se apagaria quando Ana reencontrasse o amor de sempre. Foi redondamente oco, quando o telefone ouviu planos para o regresso, como se ainda houvesse lugar para os dois.
Ouviu ao longe o bater de um relógio de parede, que, ainda que velho e trópego, demarcava este momento: 11 horas e Paulo avançou.
hf
(lourdes de castro, auto-retrato)

15 de março de 2008


Nem sempre a corda se rompe do lado mais fraco. Se te pareceu que lhe passou ao lado, o engano foi grande. Ana caiu! O espanto viu o seu auge quando a história finalmente foi contada e se percebeu que tinha sido a primeira. A vida pode sempre surpreender-nos. (Ou talvez não, se estivermos muito próximos da realidade e com capacidade de adaptação bem flexível. ) Ana sentiu o circular frio no estomago: entregara-se cedo demais. Mas quem contou a história, viu tudo: não estava só! E essa foi definitivamente a surpresa...


hf

8 de março de 2008


Dói mais na alma saber que se existe mesmo depois da perda; que não ficamos caidos na maioria das vezes num desespero eterno; que este tem fim tal como a própria razão para o mesmo e que continuaremos.


Dói muito perceber que o mundo gira inexoravelmente e que os gestos tornar-se-ão inúteis; que o luto se fará, como já tantos os outros e depois de fibrosado, há que recomeçar.


Dói o circulo.


Dói a alma por saber que pode viver sem ti.


hf

(Graça Morais)


6 de março de 2008

Ruguites




Conhecido o processo de inflamação, é legítimo lançar o neologismo: ruguite. Acordou com uma ruguite no sulo nasolabial esquerdo. Parece-lhe científico? Como se define ruguite? Sabe quais são os sinais cardinais? Certamente, iguais às de qualquer inflamação. Incha, desincha e passa. Esta não passa, mas haverá as que passa? Haverá as que se agravam, recidivam ou até se resolvem espontaneamente? Haverá um eu que se afunda na força da gravação de uma ruga? Haverá a fibrose marcada da cicatriz de uma ruga. Haverá tudo e talvez mesmo nada. Vamos escrever um ensaio. Um dia destes!

hf
(paulo robalo, desenho sem papel)