6 de dezembro de 2007

como se conta a história?


A vida cai aos poucos na energia de um relógio que não nos acompanha. O pano abre-se e a luz dá-te o protagonismo neste solilóquio. Como contar a história? Uma vida em palavras...

Mereceria, pelo menos, um guião bem feito, escrito por quem sabe mais, por quem sabe escolher a palavra certa, a eufemizar o que nunca se planeou dizer e a hiperbolizar o que já todos sabemos. Talvez fosse o caso de não dizer nada, ou de dizer um pouco mais do que nada. Porventura, até poderia contar tudo como foi numa louca originalidade pósmoderna.
Ensaios vários e bem coordenados. Cuidados de imagem. A luz seria importante. Tantos pormenores talhados para uma maioria gostar, lançar elogios mil, que calassem o embaraço do momento, as dúvidas, os pecados, os que não nada dizem e tudo pensam.

Injusta a vida que não nos permite ensaiar. E o livro abre-se . Conto-me como foi e peço-me que nada diga.



hf

(Paula Coelho, Vómito)

3 de dezembro de 2007

quando o coração ficou pequeno


Ainda se recorda do dia em que acordou e sentiu um coração pequeno. Reconta-o de um modo tão dramático, como se fosse uma verruga que tivesse nascido bem na ponta do nariz, de um dia para o outro e o espelho da manhã trouxesse essa novidade. Há dias, em que Teresa, bem mais racional, é capaz de se perder em explicações mais plausíveis sobre a pequenez do seu coração. Envolve-se de tal modo no discurso, que a interrupção pode ser fatal, tornando-se bastante desagradável. Ninguém lhe escuta a dor de ter um coração pequeno, retoma o romantismo e, por vezes, o envolvimento é tal que até verte uma lágrima. Curioso, mas há dias em que o sol lhe ilumina a alma e faz uma ou outra graça sobre o assunto. Dias há em que logo se arrepende da jucosidade e assombra o momento com um deviam ter respeito. Há horas em que tudo parece ser normal, e até se ri da sua patetice.


Às vezes, até Paulo se interroga se também ele terá um coração pequeno. Dedicar-se durante tanto tempo sobre a má sorte de Teresa, e , se no final, também o dele for pequeno. Por momentos, chega a esquecer-se de Teresa, mas logo tudo volta a ser como era.


Por que raio tenho um coração pequeno?, grita Teresa ao espelho.
hf
(fátima mendonça)

24 de novembro de 2007





Lembra-se de lhe contares tudo e de se perder num olhar teu. De palavras poucas, antes de um sorriso. Mais ainda do gelar do corpo perante a tua voz. Rita nunca se esqueceu e remói o dia em que lhe fizeste perceber o movimento giratório do mundo. As lágrimas nunca serviriam para secar um momento, mas apenas para o tornar menos penosa a sua progressão. Esta era inexorável, e Rita entendeu-o bem. Agora , fica o esperar que uns graus de latitute mais à frente tudo voltasse a fazer sentido, se bem nada como dantes.




A frase bateu-lhe três vezes, tornou-se batida e não negou: é minha!


hf


(Paula Rego, a dar de comer)

1 de novembro de 2007


Ainda olhou para trás, com a vanidade de quem se sabe em sentido contrário.
Ana protestava contra a soma inabalável dos vectores que lhe prendiam a alma.
Houve tempos em que se arrancaria do seu lugar, abandonaria o seu caminho e talvez partisse em busca de um reflexo, ainda que o pecado de estar a fugir lhe encostrasse algum arrependimento.
Agora, o tempo é outro. Guardem-se as armas, não com o sentido de que amanhã poderão ser necessárias. Não. Ana vislumbrou todo o seu caminho e advinha que jamais haverá lugar para esse tipo de lutas. Segue no rumo das rodas e conhece o seu destino. Percebeu a pequenez da vida que lhe cortou raizes, mas não lhe deu tempo para florescerem asas.
Percebeu tudo, excluiu-se de querelas irresolúveis e muniu-se apenas do que sabe essencial.
Deixa-se sentada e a vida passa.
hf
(Dali, Elementos Enigmáticos)

24 de outubro de 2007

escrita automática...

sim, serei, pedrinha numa horta de horas e horas que passam, sem que se lembrem de quem fui ou onde estive. limito-me a calcorrear-me num jeito de caminhar sobre mim mesma, já que o chão sou eu, e sobre o chão ando eu, sem mais introspecções que valha a pena referir. e serei, serei, a repetição do que sou hoje, porque serei o que sou, mas sonho com o que serei na rotina que sou. confuso? não, bem simples, mas a escrita automática de mim mesma, pedrinha da horta, flui nesta dimensão pseudo-filosófica de um contexto existencial fútil, que bem espremida poderia ser solapsista...a dimensão, e não eu, ora essa, que eu não sou nada solapsista, porque me sou e me vejo desde o início, mas o fim não o conheço...solapsista, eu! essa agora...

SF

10 de outubro de 2007


A alma tem caprichos e sabe fazer-se obedecer num corpo de um só coração. Ele cede sem resistir, como os pais cedem ao capricho de uma criança bem comportada: ela merece.


Um capricho, embrulhei a palavra e pendurei-a ao pescoço.


O choro por capricho de uma alma infeliz, que insiste para que o corpo fique triste.


Chora comigo!


E a lágrima cai. Não porque o corpo dóia, mas porque é companheiro. Vai com a outra, escuta-lhes os lamentos, sabe-a errada, mas dá-se como errado e cai também.

...

A voz de uma alma cansada faz-se ouvir num corpo que é seu único seu.


hf


2 de outubro de 2007


Ana hoje aparece envolvida numa questão maior. Há unanimidade e todos o afirmam. O Paulo, esse, permanece no seu mundo, mas a Filipa garantiu que lhe viu o agitar cefálico de aprovação. O caso não é para menos, a Teresa desta vez foi demais... como das outras vezes, de tantas outras vezes, mas hoje parece que todos ou quase todos acordaram com os olhos postos no atrevimento daquela personagem. As palavras foram claras e cairiam, bem afiadas em qualquer pessoa que vestisse essa pele, mas não na Teresa. Esta ainda embelezou o espectáculo e verteu lágrimas. Saem-lhe tão facilmente e, ainda assim, têm algum valor, pelo menos para Paulo. Ficou a remoer aquele acenar. Teria sido muito cruel? Patético, como ele só. Ana percebeu-lhe a antecipada hesitação, como a fenda que iniciou a quebra do momento. Filipa iniciou logo de seguida o vacilar. Era o fim, o coração apertou-lhe bem no peito, a testemunhar a sua existência, e Ana preparou-se para adiantar um se calhar cada um é como é.


hf
(Paula Rego)

30 de setembro de 2007


Tenho uma lágrima no canto de olho que insiste em não cair e tu aí tão perto.

Se uma lágrima cair, transparente e isolada, consegui-la-ão ver o teus olhos?

E se os olhos olham, a alma sente?

E se alma queima, o corpo vence a inércia?


Quero fechar os olhos e esquecer-me


Os olhos trouxeram o escuro. O escuro trouxe a dança do tempo, que a despertou. Ana vê os olhos de sempre à espera dos teus.


hf
(ft: Sem título, Chema Madoz)

16 de setembro de 2007


ainda sei o que vestiste ontem porque o prendi no pensamento com uma fita cor de rosa que te ficaria tão bem.
rosa projectar-se- ia no azul dos teus olhos e olharias os meus, banais e sem encanto
o encanto partir-se-ia com a jarra de vidro onde coloquei rosas

rosas. mais uma vez rosas, penso nas rosas

rosa, cravo, já foi, penso em ontem

ontem, estavas cá e o meu coração prendeu-se ao teu

o teu amor não é maior do que o meu: é na medida certa

língua solta, que sabes tu sobre a medida do amor, quero que caias já

e a língua caiu por que o desejo faz-se ordem no teu pensamento


brinco hoje para ocupar o espaço vazio


hf

(fátima mendonça
sem título)

12 de setembro de 2007


Talvez Paula se tenha perdido, ou, sei lá, se tenha mesmo esquecido. Vislumbra-se à saída de um metro e logo se recorda que perdeu a graça do seu olhar. Desconfia que tenha sido num daqueles saltos de quinze centímetros, cónicos, claro, porque só a esses a moda ilumina. Talvez nas calças justas da estação, ou até atrás de uma carteira XL... Enfim, não sabe como, mas sente que se perdeu.

Noutro dia, deu consigo a remoer a ideia de que foi numa noite de Abril, em que adormeceu a chamar por quem lhe limpasse a lágrima.
E se os dias se multiplicam, o calendário lá a surpreende a abraçar uma nova razão.
Sente o eco da própria voz no paradoxal vazio do seu corpo, a automaticidade dos seus movimentos e continua a caminhar.
Quero que o teu beijo me cale a alma!

hf


(joana salvador, sem título)

11 de agosto de 2007

Ando com uma palavra debaixo da língua. Trago-a bem presa, com um daqueles nós complicados que esperam apenas por um movimento único para se soltarem nos teus ouvidos.

Às vezes, quando o escuro da noite cala o impossível, ensaio o gesto num som calado, porque conheço bem as paredes que te separam de mim.
Sei tão bem as letras que ultrapassam o alfabeto e, às vezes, percebo-as a borbulharem na minha boca. Imagino as permutações, os arranjos e as combinações necessárias para que cada letra se toque e todas elas se fundam, dando-lhe voz.

Talvez possa dizer todas as outras palavras e esta se veja obrigada a fazer-se ouvir. Ou, sei lá, se os deuses andarem por perto, sabes já tu de cor tudo o que quero dizer...

hf

6 de agosto de 2007

outras mãos

um dedo e outro dedo, que saudades dos teus dez. Sei-os de cor e nunca me perco na conta. Ontem, encontrei um bem apontado, enquanto comia a fatia do bolo da tua mão. Ensaiei um ar triste e logo senti os cinco afegando-me o rosto. Um autoritário limpou-me a lágrima e obrigou-me a um sorriso. E eu perdi-me nas tuas mãos...










Uma mão lava a outra, as duas lavam a cara. E a alma? Quantas mãos me lavam a alma?






Se perdesses os dedos das tuas mãos, conhecê-los-ias para as recontruires?

hf

26 de julho de 2007

mãos

mãos suadas, de terra e sangue, de morte e pó. olhai-me minhas mãos, pois sem espelho não me sei, não me sou. sou-vos mãos que agem, que vos deixais envelhecer, nas atitudes rotineiras a que vos sabeis submeter prontamente, sem repulsas de maior, sem juízos de valor. cansai-vos sem questões, pois sois labor e ócio, ternura e indiferença, mas sois, porque não vos permito inexistência...olhai-me mãos, e por entre a água de meus olhos que vos turva conhecei-me, que eu já não me sei...

s.f.

24 de junho de 2007

poemas ébrios V

o cubo olhava-se, perplexo
pelo seu aspecto tosco
de granito cinzentão...
achou-se sem graça nem nexo
no mundo... achou-se fosco
e deixou morrer a razão...
resta-lhe a sensação!
autómato com o reflexo
de perseguir própria extinção...

deixa-se então pelo chão...

s.f.

17 de junho de 2007

poemas ébrios IV

"blues de várias vidas que não fui
num excesso de âmago demente,
e duma fúria de não ser outra gente,
sem o cinzento do sangue que me flui
da vontade de ser diferente.

e o coração teima e não anui,
embora pareça condescendente
com a lógica dada pela mente.
cansa-se, e no sentinte que possui
deixa-se doído, decadente.

s.f.

16 de junho de 2007

psudofilosofias agressivas da "treta"

Perturbe-se a infinita procura do certo! Perturbe-se constantemente, pois o certo está empedernido de falácias que o alimentam! A derrota nunca ensinou! Limitou-se a colocar desejos retaliativos sobre si própria, porque a derrota nunca está certa! A derrota é, no entanto, perpétua, de modo que o enaltecimento colocado na felicidade nunca deixa de ser um desejo maior...
Coloque-se uma praga na procura do certo! Deixai prevalecer a derrota! Que tudo desista, e depois morra... e certo tudo se tornará doravante...

s.f.

7 de junho de 2007

Maria,



Ainda se lembra, Maria? Faça o esforço e veja-me menina e moça, como a que saiu da casa de seus pais. Recorde-me num vestido azul de cetim do mais caro da venda. Não!, nunca usaria chita, Maria! Talvez a criada! Pronto, mas com certeza uma chita fina, a mais cara do Senhor Luís.
Abandone esses pormenores e fixe-se no meu sorriso, ao som do canto melodioso do que já ninguém sabe de cor...
Maria, olhe-me nos olhos e veja como não sei mentir. Ouça o que digo e responda-me à altura. Embale-me no seu regaço. Pregue-me um beijo e veja a alegria da mão que a puxará, para lhe dar a brancura de uma flor.

"Acordar é que eu não queria... "

hf

(Paula Rego: a aliança dos ratos)

26 de maio de 2007

poemas ébrios III

cai no copo a desalma
do meu corpo sem se ser.
turpor estúpido, estúpida calma,
estúpido eu, sempre a morrer.

leio os olhos pela palma
num copo que sobe sem descer,
sem perceber que se me espalma
o que devia perceber...

s.f.

24 de maio de 2007

1985 (after Orwell's 1984)

Uma claridade cinzenta, como tudo o resto, foi suficiente para lhe tirar o sono. "Merda! Outro dia igual aos outros!" O enfado dos dias que lhe corriam pela pele não derivavam da ausência de entretenimento, fosse ele qual fosse! Bem pelo contrário, era a excessiva presença de tudo que o sufocava, quando tudo podia, e devia, ser simples.. Não sabia o que sentir, nem sabia porque sentia o que sentia nas circunstâncias em que estava, mas o antagonismo que a lógica criava nas emoções tidas derreava-o. O cansaço de tal luta era tão intenso que as cores deixavam de existir. Era muito cansativo ver fosse o que fosse, quanto mais cores.
Saiu do seu quarto cinzento, entrou no quarto-de-banho cinzento, tomou um banho de água cinzenta, vestiu-se de cinzento, escovou o cabelo e os dentes, ambos cinzentos, e saiu...para o mundo exterior, também ele cinzento. O solapsismo infiltrava-se-lhe sob a forma de ausência de cores, dado inexplicavelmente elas lhe trazerem alguma emoção. Numa repressão lógica da mesma, ia sobrevivendo todos os dias, sem viver. Era ditador de si próprio, e só a pesada embriaguez a que se sujeitou de noite o fez perceber de tal situação...
Quando no dia seguinte acordou, tal reflexão estava extinta, e tudo recomeçou como no dia anterior.

s.f.

13 de maio de 2007

poemas ébrios II

Ah!Merda!
Tanta luz!
Nebulina que se me herda
Arrasta o corpo que me conduz,
Mata a garrafa que me seduz!

Ah!Parte-a!
Estilhaça-a!
Derrama o liquido sobrante
Sobre a culpa asfixiante!
Mata a ressaca em que me pus!

Ah!Morra!
Erro de merda!
Não me tenho mais pachorra!
Atinjo-me sempre d'alma lerda!
Caralho p'ra isto! Porra!

s.f.

11 de maio de 2007

Tédio. Falou-me do tédio. Acho que está contente em ter encontrado uma palavra longe da tristeza e, sobretudo, longe do banal, que lhe confere a excêntrica posição que procura. Se tivesse de definir a minha vida numa só palavra, escolheria o tédio. Repetiu a frase vezes sem conta, talvez umas três ou quatro para me aproximar com exactidão. Não pude deixar de sorrir, mas pouco mais fiz, mesmo muito pouco, especialmente quando me recordo que fui eu quem lhe perguntou sobre a vida.

Estranho. Estranho foi ter respondido. Esperava uma simples repetição da cortesia e obtive mais; possivelmente pela novidade da resposta, deixei um sorriso. Um simples esforço muscular, que tentava dissipar o peso daquela afirmação e me alhear de uma resposta à altura.

Ironia. Ironia foi dizer ele aquilo que só eu sinto.

hf

5 de maio de 2007

poemas ébrios I

atraso meu, insocialidade,
insónia de gente
que sente saudade
de alma diferente.
sem jovialidade,
em morte aparente.
controlo a vontade
de amor ardente,
e vivo a saudade...

não sei ir em frente,
e com pouca idade
cresço decrescente.

e morro diferente...
morro de saudade
por amor ardente...

s.f.

1 de maio de 2007

para os que se julgam sozinhos no mundo

segue-se um texto já bastante antigo de minha autoria, que nunca pensei em exibir a nível pessoal, quanto mais publicado neste tão estimado weblog. depois de o ter dado a ler a uma grande amiga (a única leitora até esta hora), senti-me impelido a publicá-lo. é cru, e revolve-me as entranhas, porque no fundo é uma maneira muito sucinta de me explicar, sendo que permanece mais ou menos actual. mais uma vez, o lápis que escreveu foi guiado pelo álcool e pelo fumo.

um grande obrigado também a hf, pelo estímulo dado.

para os que se julgam sozinhos no mundo:

"Eu não sou eu, somos nós. Existe em mim uma ausência de unidade, como que se várias personagens habitassem o meu corpo e lutassem entre elas pelo protagonismo de se manifestarem como aquele que deveria ser eu. Algumas já existiam de raiz, outras foram aparecendo por força de ocorrências que massacraram a minha estabilidade relativa.

Dizer que sou por natureza simpático e rancoroso é um erro que me imponho a mim próprio. Nunca sou os dois ao mesmo tempo. Vivo-me em situações diferentes, com atitudes diferentes, porque somos diferentes! Nós, a pluralidade na singularidade da personagem que os outros vêem.

A tristeza é, portanto, possivelmente o único sentimento de união que possuo. Sou triste porque o pretendo, ou porque me vejo pretendê-lo. Sou triste porque sim, porque me sinto eu sendo triste, porque assim sou uno, porque sei que sou eu, verdadeiramente.

Procuro o sucesso, mas empurro-me para a queda…apenas porque tenho medo de mudar. E entristeço-me ao saber que desiludo quem me rodeia, por ser sempre alguém que não devo. Por fazer conhecer a quem me ligo a minha natureza poluída e, infelizmente, contagiosa, afectando negativamente quem amo. E isso é imperdoável.

Consequentemente, as culpas vão-se acumulando com a repetição sistemática do erro de procurar a tristeza. E começo a deixar de me suportar ou tolerar.

Talvez para me entristecer…talvez porque sou má pessoa…"

(15/6/2005) s.f.

30 de abril de 2007

mais uma história de coisas

vou olhando para os sapatos a deambular, enquanto me encaro cinzenta num corpo torpe. a alma já foi, e só resta alguma perseverança em continuar o caminho, apesar da chuva me fustigar. ainda vou olhando para cima, e vejo fumo a desenhar-se para fora do corvo que se entretém a debicar as próprias entranhas de consciência. por causa dele estou à chuva, que estupidez! não basta a água, mas o álcool, as cinzas e as lágrimas também me sujam. sinto-me porca, bem como todas as minhas companheiras de função. e ele também, adivinho... mas o que é certo é que parece ter prazer em andar cinzentão, e só eu, gabardina mais velha que ele, pareço acompanhá-lo nesta caminhada à chuva... as lágrimas, essas misturam-se com o chão molhado.

s.f.

25 de abril de 2007



Quando chegaste, encontraste-me morto. Morto, como o tal gato da curiosidade. Curioso, foi não teres feito o esforço de verter um pouco de hipocrisia e imitares os tristes com a perda.
Olhei-te e percebi-te num relógio de dois ponteiros certos, desconfiei que naquele momento não disporias de tempo para mais um acontecimento. Quis ainda espreitar a tua agenda e conhecer a data do registo da minha morte, mas já havias batido a porta.
Não querendo deixar-me ao abandono da dúvida, quis perseguir-te pela cidade e gritar-te em voz alta que eu tinha morrido e que o luto devia ser feito, por uma questão de sossego da alma, mas há qualquer coisa na morte, em que o corpo já não obedece a um desaire mental daqueles.

Deixei-me ficar em paz… até à minha morte.



hf

23 de abril de 2007

chapéu cinzento

Denso, deturpado, cansado. Outrora usado repetidamente por um senhor idoso, cujo ausência de cabelo o fazia ser útil, eis que agora repousa, ao que parece eternamente, no baú das coisas velhas. O característico cheiro a mofo incomóda-o, como tudo o que é frio e eterno que aparenta vir num futro mais ou menos próximo. E numa lógica envelhecida, não se entende útil. Jamais alguém o colocará no cocuruto da cabeça, sendo que o tecido que o estrutura é impossível de ser reutilizado.
Sendo assim, deixa-se estar, num turpor mórbido que não imita a morte, mas que no fundo a é. Não há mais chapéu cinzento para ninguém...

sergio f.

17 de abril de 2007

cefaleias

«Agradeço o milagre farmacológico e numa névoa de cores difusas acabo por tragar aquilo de uma só vez com café. Arre! Ainda sabe pior que com água!

Depois espero. Em princípio as preocupações que suscitaram esta cefaleia não desaparecerão assim por artes do mago, mas talvez haja alguma esperança para esta dor difusa que, diga-se de boa verdade, é irritante com’ó caralho (este vernáculo deveria ser também considerado sintoma da patologia – imagine-se qualquer coisa como “o paciente descreverá uma dor referida à extremidade cefálica, com o uso da expressão “irritante com’ó caralho!””).

Ah! E vou ficando mais lúcido, mas as preocupações não desaparecem, o que me faz pensar: até que ponto não seria melhor ter suportado aquela merda de dor física a isto? Existirá alguma coisa masoquista em mim que me faça procurar constantemente remorsos?» - perguntou o revolver, enquanto arrefecia depois do disparo.

«Não sei! Mas pelos vistos mataste-me, imbecil!»

(reflexão do autor: Ah! Viva o estado delirante do sono e a escrita fácil!)

Sérgio F.

9 de abril de 2007

A couve fica quieta e espera e o tempo passa, com dias de sol, vento, chuva, geada...surpreendentemente resiste, mas não isenta de qualquer lesão que não sei descrever (é-me algo estranho, o mundo das couves). alucina à luz e ao escuro, dando-lhe a impressão que algo se move que não ela, mas se move debaixo dela, arrastando-a sem a mover. algo estranho, deveras, somente justificável pelas águas de chumbo que a regam, pensa ela numa meditação de cerveja, ou vinho, ou qualquer outra coisa que as couves usam para conseguir a embriaguez - como já afirmei, nada sei de couves. e eu a olhar p'rá couve, sem ela olhar p'ra mim...há qualquer coisa que não faz sentido nisto. bem, talvez seja melhor deitar a garrafa fora."


(estava muito bebedo quando escrevi isto)
Sérgio F.

22 de março de 2007

Hoje vi-te num espelho meu...


Hoje vi-te, como espelho meu. O coração apertou-me num corpo que já há muito aprendeu a não se deixar abalar. Olhei-te e vi os mesmos olhos à procura de reflexo. Vi-lhes a ternura de quem se sente ímpar no meio de iguais. Reconheci-lhes a lágrima calada no barulho de um pestanejar mais forte.

Vi-me e vi-te e se o abraço fosse espontâneo, agora senti-lo-ias bem forte; e se a lágrima ainda caísse, seca-la-ias; mas se o gesto calasse a tua solidão por um instante, o curto espaço de tempo que até te dares conta da inutilidade (do gesto); não calaria o meu grito, esse que sai já calado e se sabe eterno.

Talvez tu, ainda aconselhado pelo desespero, acredites em gestos mágicos, em ilusões salvadoras, em respostas perfeitas, mas só a ingenuidade te pode fazer crer que seja eu. A ingenuidade… que vais sufocar com o marcar das rugas e que vai persistir muda, roendo em dor latente e solitária, presa a um corpo que aprenderá mais velozmente do que o coração.

Como conheço bem os teus trilhos! E como desejaria que fossem diferentes dos meus… É possível que o sejam e até isso dói, mas o teu presente está tão próximo do que quero que seja passado.
Rita


hf

(imagem: Isabelle Faria, auto-retrato, 2003)



21 de fevereiro de 2007

| o prego e o mar


estava longe de ser velho. tinha ainda a juventude na fronte. tinha ainda a cabeça cheia de certezas.

da juventude não se libertaria naquela noite. mas estava agora, com certeza, um passo adiante no seu afastamento dos verdes anos.

disse-lhe ela que merecia ele melhor. não conseguiu concordar. mesmo acenar. um aceno teria bastado para quebrar o silêncio que enchia cortante a sala. até os estranhos em volta pareceram concordar com ela. o tirintar da loiça parou em frente no café, tal era o acordo do mundo em geral. ele emagrecia, na sua mudez. ela falava sem brotar som. conversaram durante horas, calado que se mantinha ele, absorto em ruminações tacanhas.
julgava-se pelo que quis fazer, penalizava-se pelo que devia ter tentado, sem nunca abrir a boca. ela cavalgava pelo pântano do injustificável, para nunca admitir o que ele sabia. ele desaparecia de inanição. ela desapareceu do café, só de solidão.

estava cansado de tanto envelhecer. as dores do crescimento quebravam-lhe o corpo, as lágrimas brotaram finalmente de tanta dor. e foi para casa, afundado como prego em maré vaza.

human behaviour

if you ever get close to a human
and human behaviour
be ready to get confused

there’s definitely no logic
to human behaviour
but yet so irresistible

there’s no map
to human behaviour

they’re terribly moody
then all of a sudden turn happy
but, oh, to get involved in the exchange
of human emotions is ever so satisfying

there’s no map
and a compass
wouldn’t help at all

human behaviour
b. gudmundsdottir/n. hooper debut.björk1993

16 de fevereiro de 2007

Novidades












Diz que se esqueceu. Hoje, já não é como ontem. Parece que o relógio fez cair a última folha do velho calendário e agora o vento grita por mudança.


Não se lembra bem, mas era diferente. Engraçado como a distância do tempo pode transformar a memória. Talvez as imagens que reproduz estejam afastadas do real, como naqueles filmes que voltamos a ver anos depois e verificamos a sua falta de brilho.
Talvez não houvesse brilho, mas apetece tanto dizer: que saudade. O despertador dá o pontapé do costume e o hábito desfaz-te no esquecimento.

Prioriridades.

Calendários.

Horários.

Fala-me de ti e dessa tua nova vida.

hf