30 de abril de 2007

mais uma história de coisas

vou olhando para os sapatos a deambular, enquanto me encaro cinzenta num corpo torpe. a alma já foi, e só resta alguma perseverança em continuar o caminho, apesar da chuva me fustigar. ainda vou olhando para cima, e vejo fumo a desenhar-se para fora do corvo que se entretém a debicar as próprias entranhas de consciência. por causa dele estou à chuva, que estupidez! não basta a água, mas o álcool, as cinzas e as lágrimas também me sujam. sinto-me porca, bem como todas as minhas companheiras de função. e ele também, adivinho... mas o que é certo é que parece ter prazer em andar cinzentão, e só eu, gabardina mais velha que ele, pareço acompanhá-lo nesta caminhada à chuva... as lágrimas, essas misturam-se com o chão molhado.

s.f.

25 de abril de 2007



Quando chegaste, encontraste-me morto. Morto, como o tal gato da curiosidade. Curioso, foi não teres feito o esforço de verter um pouco de hipocrisia e imitares os tristes com a perda.
Olhei-te e percebi-te num relógio de dois ponteiros certos, desconfiei que naquele momento não disporias de tempo para mais um acontecimento. Quis ainda espreitar a tua agenda e conhecer a data do registo da minha morte, mas já havias batido a porta.
Não querendo deixar-me ao abandono da dúvida, quis perseguir-te pela cidade e gritar-te em voz alta que eu tinha morrido e que o luto devia ser feito, por uma questão de sossego da alma, mas há qualquer coisa na morte, em que o corpo já não obedece a um desaire mental daqueles.

Deixei-me ficar em paz… até à minha morte.



hf

23 de abril de 2007

chapéu cinzento

Denso, deturpado, cansado. Outrora usado repetidamente por um senhor idoso, cujo ausência de cabelo o fazia ser útil, eis que agora repousa, ao que parece eternamente, no baú das coisas velhas. O característico cheiro a mofo incomóda-o, como tudo o que é frio e eterno que aparenta vir num futro mais ou menos próximo. E numa lógica envelhecida, não se entende útil. Jamais alguém o colocará no cocuruto da cabeça, sendo que o tecido que o estrutura é impossível de ser reutilizado.
Sendo assim, deixa-se estar, num turpor mórbido que não imita a morte, mas que no fundo a é. Não há mais chapéu cinzento para ninguém...

sergio f.

17 de abril de 2007

cefaleias

«Agradeço o milagre farmacológico e numa névoa de cores difusas acabo por tragar aquilo de uma só vez com café. Arre! Ainda sabe pior que com água!

Depois espero. Em princípio as preocupações que suscitaram esta cefaleia não desaparecerão assim por artes do mago, mas talvez haja alguma esperança para esta dor difusa que, diga-se de boa verdade, é irritante com’ó caralho (este vernáculo deveria ser também considerado sintoma da patologia – imagine-se qualquer coisa como “o paciente descreverá uma dor referida à extremidade cefálica, com o uso da expressão “irritante com’ó caralho!””).

Ah! E vou ficando mais lúcido, mas as preocupações não desaparecem, o que me faz pensar: até que ponto não seria melhor ter suportado aquela merda de dor física a isto? Existirá alguma coisa masoquista em mim que me faça procurar constantemente remorsos?» - perguntou o revolver, enquanto arrefecia depois do disparo.

«Não sei! Mas pelos vistos mataste-me, imbecil!»

(reflexão do autor: Ah! Viva o estado delirante do sono e a escrita fácil!)

Sérgio F.

9 de abril de 2007

A couve fica quieta e espera e o tempo passa, com dias de sol, vento, chuva, geada...surpreendentemente resiste, mas não isenta de qualquer lesão que não sei descrever (é-me algo estranho, o mundo das couves). alucina à luz e ao escuro, dando-lhe a impressão que algo se move que não ela, mas se move debaixo dela, arrastando-a sem a mover. algo estranho, deveras, somente justificável pelas águas de chumbo que a regam, pensa ela numa meditação de cerveja, ou vinho, ou qualquer outra coisa que as couves usam para conseguir a embriaguez - como já afirmei, nada sei de couves. e eu a olhar p'rá couve, sem ela olhar p'ra mim...há qualquer coisa que não faz sentido nisto. bem, talvez seja melhor deitar a garrafa fora."


(estava muito bebedo quando escrevi isto)
Sérgio F.