7 de setembro de 2006

Vícios do Coração



Ouvi dizer que hoje era o dia. Vesti-me em pura obediência ao espelho. Ditou-me que vestisse o que só uso por vezes, mas que até eu sei que me cai bem. Saí à rua com o pé direito, que molhei imediatamente por estar a chover. João, empresta-me o guarda-chuva! Molhei-me todo o caminho, João já não está. Ainda o chamo. São hábitos que se criam e insistem em ficar. Desconfio que é um vício do coração. Às vezes, conto-lhe deste meu hábito. O telefone não transparece a cara, mas sei que não gosta. Ainda assim, viciada que sou, conto-lhe e logo lhe peço desculpa por o fazer, o que o irrita mais. Mudemos de assunto e tu estás bem? Desde que saiu de casa, nada mais falamos do que trivialidades. Não sei se algum dia, os assuntos foram outros, mas os de hoje, sinto-os vazios. Assim, como a casa, o quarto, os brinquedos, os livros, tudo que ele deixou e já nem o sabe procurar.


Patética, sim, sou. Nunca pensei usar das habilidades mentais que reconheço a quem chamava de velhos. Agora, sou eu a velha, que deixei de viver e agarrei-me a um filho, que já não é meu.

Sim, eu sei tudo, mas o coração tem vícios.

hf

(Visitação, Graça Morais)

Um comentário:

porumoutrolado disse...

ah, hf... que capacidade invejável de escrever pequenas histórias em meia dúzia de parágrafos... obrigado
schacim...