25 de maio de 2008

choveu tanto naquele dia



No início, todos acharam graça: o cheiro da terra molhada, a bom tempo vinha para as colheitas, também é preciso que chova, abril águas mil, entre muitas outras expressões de louvor ou pacífica aceitação que fluíam na boca de todos.
Depois, despertou-se a repulsa a um tempo que tardava em não mudar. Houve uns, em que essa reacção veio bem cedo; outros só muito lá para o fim. Era o incómodo de ter de andar sempre de guarda-chuva, a roupa de verão que se queria usar, o desagradável de estar tudo molhado, até mesmo a roupa que já não secava Ateou-se o fogo da desgraça e todos, ou pelo menos a maioria visível, estavam já contra esta chuva.
E depois?

Protestar. Manifestar. Um abaixo-assinado, a entregar a quem? O governo? O governo estava longe de controlar o tempo atmosférico. Esgotaram-se rapidamente as ideias de projectos de revolta. Esperar pareceu o mais razoável. Ouviram-se risos quando um dos líderes de opinião o disse, que mais opções haveria senão a de esperar? Esperar não era uma opção, era o inevitável. Calava-se a revolta, agora inútil, e simplesmente aguardava-se que o tempo mudasse.


hf
(bem-vindo à cidade da paz, fátima mendonça)

11 de maio de 2008

tem de se errar


Rita descobre o erro e tenta percorrer-lhe o fio até à origem.

Errou porque assim teve de ser. O relógio não parou para que ela tivesse o tempo para se debruçar sobre o problema, analisá-lo com atenção e cuidado, ensaiar decisões e talvez só depois agir. Não. Rita não teve esse cuidados, tivera muitos outros, mas o imperativo da acção soou alto e fez.
Agora, vive o erro, conhece-o a forma e o conteúdo circulares, mas nenhum destes é estático e inabalável pelas horas ou pelas dias. Sabe que continuará, depressa tudo tomará outras formas, também estas susceptíveis ao tempo e ao andar das coisas...

hf
paula rego: o vómito

7 de maio de 2008

ter a razão


Ana convenceu-se da razão, gritou-o alto em gestos e palavras que veiculam bem aquela certeza. Se alguém estava errado, não era ela. Rita, imperdoável. Paulo, lamentável. Maria, nem valeria a pena comentar.

Expos os seus argumentos, vezes sem conta, sempre que alguém lhe perguntava sobre o que passara. Entre mortos e feridos, Ana saira com a certeza de que ninguém lhe poderia ter feito o que fizeram, Não haveria retrocesso até a mágoa passar e isso, bem sabia, só depois de uma prova séria de arrependimento. Ora, a prova não veio. Nenhum dos restantes envolvidos se adiantou com tal manifestação. E tudo isto martelava na cabeça de Ana.

Eram regras com a transparência matemática, universais, as que tinham sido ofendidas, como não se adiantarem os ofensores e mostrarem reconhecimento do erro e arrependimento? De muito pouco lhe valeria a certeza de estar certa, se os outros não agiam como tal? De muito pouco, mesmo, ao ponto de reconsiderar argumentos, avançar para o telefone e tentar colocar um ponto final em todo aquele espectáculo de profunda falta de sentido, mostrar ela própria arrependimento por uma eventual falha... Mas também isso não veio.
Ana estava diferente porque não estava só. Não eram três contra uma, era uma uma com muitas certezas dessas enraizadas e que falam por nós: o tempo passa, e estava disposta a esperar até que tudo se recompusesse.


hf

joao francisco

27 de abril de 2008


o vento soprou a palavra e levou-a para longe daquele velho dicionário. Houve lágrimas, risos e até pausas, mas ninguém percebeu a sua falta.

Anos mais tarde, um perito em história natural das palavras deu conta de que, de acordo com cálculos elaborados com a colaboração de grupos exímios na arte de fazer contas, teria já desaparecido mais de uma dezena de palavras do velho dicionário. Caiu em saco roto, como um daqueles prenúncios de que tudo está mal e ficará ainda pior.

Meses volvidos, um conhecido artista da televisão disse em público que lhe faltavam palavras, as revistas e os jornais juntaram a simples soma de factos e venderam. Era preocupação de domínio público: faltavam palavras no velho dicionário.

Venderam muito mais quando explicaram o movimento das palavras, que são arrancadas durante uma noite de inverno, partem com o vento para o universo. Talvez um dia, se juntem, num pequeno dicionário. Venderam mais quando especularam sobre quais as palavras em fuga e quais seriam as próximas. Na cidade, vendiam-se pequenas pastilhas com as putativas futuras fugitivas para mascar, pintavam-se palavras nas paredes, recorriam-se a todos os artefactos para que todos as tivessem presentes e as reconhecessem em caso de fuga.

O mundo mudara, estava desperto para esta realidade, nos livros de escola, nos jornais, na televisão, mas então como não eram capazes de sentirem a falta e até reencontrarem as palavras ausentes?... Teóricos cogitaram muito e vieram com estas: palavras leva-as o vento e tudo o que não há se escusa.


hf

chema madoz

17 de abril de 2008


Congelou o tempo e riu-se para trás. Tinha pouco jeito para o gesto, mas até imitou cuidadosamente e até pareceu um estridente riso de indiferença. Gonçalo repetiu umas quantas vezes, até se esgotar o seu tempo naquela conversa. Não queria pensar e ponto final. Não se escreve mais pelo menos naquela página. Se calhar há outro livro onde registamos este tipo de alheamento, não acredito que a vida ficasse indiferente aquele conjunto de acontecimentos. Esperava o momento em que tivesse de regressar, porém até esse dia, mantinha-se congelado.

hf
miguel telles da gama

28 de março de 2008

olhos cansados viram uma alma triste

Os meus olhos ou os teus?
Disse que, nessas alturas, sente todas as palavras lhe soam vazias e que não confiava na sua própria voz.
Falou de amores, de penas, de cruzes, de um coração que sofre, disse-me que amava, pediu um abraço, encostou-se e chorou.
Limpou as lágrimas e saiu-se com esta: nem mesmo sei se estas lágrimas são sinceras.
Amanhã, descansarei este corpo e recuperarei os olhos de sempre...


hf


(graça morais)

27 de março de 2008


Deu-lhe tudo e diz que recebeu pouco mais do que nada.

Hesitou no nada, mas ponderada colocou o pouco mais do que nada. Paula detestava dramatismos românticos e fugas a realidade aritmética a que se habituara. Com rigor, poderia dizer que recebeu algo em troca, mas a balança desquilibrava em claro desfavor para com ela. Lançou o desabafo, mas arrependeu-se. Estaria a cair nesse romantismo de que tanto se pretendia afastar? Ainda que houvesse essa possibilidade, continuaria no momento, tentando manter-se alheada de possíveis juizos de valor.

Sabes, não foi desta, também não foi desta que sinto a plena retribuição.

Gonçalo escutava indiferente.

Dói-me a alma sentir que eu faria tudo para que ele ficasse, e ele partiu. Dói-me a alma porque conheço o texto como ninguém, dou as deixas e nada se passa como o que quereria.

Gonçalo sorriu, incapaz de dizer que, embora fizesse o esforço, era evidente a sua incapacidade para compreender aquele desabafo. Pronto, teve de ir embora. E depois? Um sorriso também destrói, e Paula percebeu-o como reprovação.

Deixa lá, são coisas que me passam por esta cabeça depois de dez horas de trabalho.

Nessa altura, Gonçalo adiantou: eu compreendo.

Depois, foi o desejar que a conversa acabasse. Sentiu-se incompreendida, talvez patética.

Por que ainda continuo a querer?

hf

(Joana Salvador)

25 de março de 2008

riso das voltas que a pipa dava




Ainda agora me dá riso as voltas que a pipa dava! E ria-se como uma perdida.
Se dores tinha, daquelas no abdómen por tanto se rir, não parecia, por cada vez se tornava mais poderoso o estridor daquele riso.
Se havia um momento em que se pensava que ia cessar, o engano era imediatamente revelado quando se soltava num daqueles paroxismos nada contagiantes. Repetia a mesma frase, recontrui-a em inúmeros arranjos, trauteava-a como se de canção se tratasse, empenhava notas como se fosse música, mas logo explodia o riso.

Ria alto, tão alto, talvez não o suficiente para preencher o vazio do momento.

hf
(Paula Rego)

18 de março de 2008

Conta-me uma daquelas histórias que te faz sonhar.




Uma história, uma história pequenina ou até maior, que não me importo de te ouvir falar.
Fala-me de uma árvore de ramagem verde, com frutos vermelhos e redondos, onde debica um passaro azul.
Faz-me ver um sol amarelo e pintar-lhe um sorriso grande.
Desenha umas nuvens num céu azul e deixa aparecer o verde quando tocar o amarelo do sol.
Conta-me da casa pequena, com três janelas e uma varanda.
Pinta o fumo branco de uma chaminé alta.

Dá-me um baloiço entre flores mil onde tu e eu vamos rir e pára o relógio.


hf
(fátima mendonça, sem título)

17 de março de 2008


Não quis partir o momento, Paulo ecoou as mesmas palavras que se esvaziaram na boca de Ana. O tempo estava prestes a passar e ele sabia bem que as palavras depressam iriam deixar de ter sentido. Repetiu ainda assim as saudades que tinha, falou muito das que não tinha e das que deixaria de ter. Repetiu um sentimento forte, um do qual já começava a esquecer-se e que se apagaria quando Ana reencontrasse o amor de sempre. Foi redondamente oco, quando o telefone ouviu planos para o regresso, como se ainda houvesse lugar para os dois.
Ouviu ao longe o bater de um relógio de parede, que, ainda que velho e trópego, demarcava este momento: 11 horas e Paulo avançou.
hf
(lourdes de castro, auto-retrato)

15 de março de 2008


Nem sempre a corda se rompe do lado mais fraco. Se te pareceu que lhe passou ao lado, o engano foi grande. Ana caiu! O espanto viu o seu auge quando a história finalmente foi contada e se percebeu que tinha sido a primeira. A vida pode sempre surpreender-nos. (Ou talvez não, se estivermos muito próximos da realidade e com capacidade de adaptação bem flexível. ) Ana sentiu o circular frio no estomago: entregara-se cedo demais. Mas quem contou a história, viu tudo: não estava só! E essa foi definitivamente a surpresa...


hf

8 de março de 2008


Dói mais na alma saber que se existe mesmo depois da perda; que não ficamos caidos na maioria das vezes num desespero eterno; que este tem fim tal como a própria razão para o mesmo e que continuaremos.


Dói muito perceber que o mundo gira inexoravelmente e que os gestos tornar-se-ão inúteis; que o luto se fará, como já tantos os outros e depois de fibrosado, há que recomeçar.


Dói o circulo.


Dói a alma por saber que pode viver sem ti.


hf

(Graça Morais)


6 de março de 2008

Ruguites




Conhecido o processo de inflamação, é legítimo lançar o neologismo: ruguite. Acordou com uma ruguite no sulo nasolabial esquerdo. Parece-lhe científico? Como se define ruguite? Sabe quais são os sinais cardinais? Certamente, iguais às de qualquer inflamação. Incha, desincha e passa. Esta não passa, mas haverá as que passa? Haverá as que se agravam, recidivam ou até se resolvem espontaneamente? Haverá um eu que se afunda na força da gravação de uma ruga? Haverá a fibrose marcada da cicatriz de uma ruga. Haverá tudo e talvez mesmo nada. Vamos escrever um ensaio. Um dia destes!

hf
(paulo robalo, desenho sem papel)

10 de fevereiro de 2008


Tive um cubo de gelo derretido na espinha e senti um arrepio. Brutal, Ana dissolveu a possibilidade de troca de palavras. Tem punhos frágeis, mas também soube dizer basta naquela mesa. Guilherme fechou a boca por sentir a farpa, mas, imune e de resposta rápida, assaltou com mas a conversa não está a agradar?. Não, estou parva. Vou para casa. Distribui os beijos com um sorriso e fechou a porta. Foram gestos rápidos e pouco aborvidos, nem tempo houve para ouvir um O que se passa? da Rita, ou um Queres companhia? do António ou o bem mais sincero Também vou daqui a pouco e ligo-te de seguida. do Filipe. Os dois eram iguais, até onde a igualdade o permitia. Havia a diferença no agir: o cumprimento das regras, e que regras!, a que Filipe se submetia; mas também ele estava aborrecido com o Guilherme e com que este representava. Suportável, mas não naquele dia para Ana. Há dias em que não me apetece aturá-lo. Eu sei, mas vamos tomar café os dois. E foram, cúmplices uma vez mais sob aquele céu.
hf

1 de fevereiro de 2008

E depois veio o perder...



E perdeu tudo. Tudo o que tinha e julgava seu. Tudo que ainda era nada, mas lhe estava prometido. André percorreu aquela sala vezes sem conta, fazendo estranhos desenhos de desespero. Perder tudo? Havia coisas que nem se importaria e sempre soube que lhe eram emprestadas, mas e o resto que já era tão seu? E o que era quase seu? Surgiram estas no meio de tantas outras indignações.

O tempo passou, cerca de 30 minutos, André ensaiou esforços de resígnio e quis tirar do saco a sapiência que não era sua: tudo ainda será meu, mas de um modo diferente. Reconheceu imediatamente o seu alheamento a estas palavras, lançou um grande ai e a revolta continuou, continuou e continuou até o relógio marcar mais uma hora e André perceber o vazio dos gestos e palavras contra a pontualidade de um relógio e decidir calar todo o seu desespero.

hf

(júlio pomar: gato e o violino)



23 de janeiro de 2008

De volta à roda do mundo, ainda saberás rodar?


Patrícia auscultou-lhe um coração partido. Partido, Paula sorriu, do jeito que se faz quando nos dizem o óbvio. Nem um suspiro, nem um comentário, apenas um sorriso talvez também por ver-lhe reconhecida aquele lacinante aperto que a incomodava há muito. Sim, eu sei. Nada mais e já fui muito, talvez demais. Patrícia, essa armazenou o caso, mais um que se parte. Acontece. Fragilidades de um ser. Mas há coisas piores, pois então. Repouso, muito repouso. E as melhoras. Obrigada. Obrigada por quê? Por nada, mas saiu-lhe por educação. A dor era sua e teria aprender a viver com ela. Tudo passa... rematou a ciência ante um coração partido.
(fátima mendonça, cordeiro)
hf

2 de janeiro de 2008


Encontrei uma palavra a tentar cair do dicionário. A dúvida infiltrou-se-me por percursos já conhecidos. Talvez o primeiro ímpeto tenha sido o de a forçar a voltar, talvez fosse o segundo. Sei que foram tantas as voltas que perdi a noção de qual o primeiro movimento. Porventura poderia ser importante, fazer a memória ter um esforço, não vá esta ordem de aparecimento estar relacionada com a sua relevância. Não sei se o Guilherme já o sentiu, mas é tão terrível como descobrir que os dias se sucedem sem reflectirem a nossa vontade; e esta comparação é válida, não se apresse a dizer-me que a primeira depende do movimento da nossa vontade. Se o fizer, então nunca o viveu. Descobri que a palavra caiu numa cadeia de acontecimentos inexorável! Até me passou pela cabeça memorizá-la para a voltar a escrever, quando as correntes se acalmassem, mas não! Não e não! Nem me lembro da palavra, sei que o dicionário já não a tem, como qualquer dia perderá outras, e até verá novas serem-lhe escritas.
É terrível, terrível, meu caro perceber que muito passa sem o nosso controlo, mesmo o que a priori pareceria resultado de um esforço volitivo. Terrível também o desespero de não lhe percebermos o rumo.

hf
(fotografia: Chema Madoz)

6 de dezembro de 2007

como se conta a história?


A vida cai aos poucos na energia de um relógio que não nos acompanha. O pano abre-se e a luz dá-te o protagonismo neste solilóquio. Como contar a história? Uma vida em palavras...

Mereceria, pelo menos, um guião bem feito, escrito por quem sabe mais, por quem sabe escolher a palavra certa, a eufemizar o que nunca se planeou dizer e a hiperbolizar o que já todos sabemos. Talvez fosse o caso de não dizer nada, ou de dizer um pouco mais do que nada. Porventura, até poderia contar tudo como foi numa louca originalidade pósmoderna.
Ensaios vários e bem coordenados. Cuidados de imagem. A luz seria importante. Tantos pormenores talhados para uma maioria gostar, lançar elogios mil, que calassem o embaraço do momento, as dúvidas, os pecados, os que não nada dizem e tudo pensam.

Injusta a vida que não nos permite ensaiar. E o livro abre-se . Conto-me como foi e peço-me que nada diga.



hf

(Paula Coelho, Vómito)

3 de dezembro de 2007

quando o coração ficou pequeno


Ainda se recorda do dia em que acordou e sentiu um coração pequeno. Reconta-o de um modo tão dramático, como se fosse uma verruga que tivesse nascido bem na ponta do nariz, de um dia para o outro e o espelho da manhã trouxesse essa novidade. Há dias, em que Teresa, bem mais racional, é capaz de se perder em explicações mais plausíveis sobre a pequenez do seu coração. Envolve-se de tal modo no discurso, que a interrupção pode ser fatal, tornando-se bastante desagradável. Ninguém lhe escuta a dor de ter um coração pequeno, retoma o romantismo e, por vezes, o envolvimento é tal que até verte uma lágrima. Curioso, mas há dias em que o sol lhe ilumina a alma e faz uma ou outra graça sobre o assunto. Dias há em que logo se arrepende da jucosidade e assombra o momento com um deviam ter respeito. Há horas em que tudo parece ser normal, e até se ri da sua patetice.


Às vezes, até Paulo se interroga se também ele terá um coração pequeno. Dedicar-se durante tanto tempo sobre a má sorte de Teresa, e , se no final, também o dele for pequeno. Por momentos, chega a esquecer-se de Teresa, mas logo tudo volta a ser como era.


Por que raio tenho um coração pequeno?, grita Teresa ao espelho.
hf
(fátima mendonça)

24 de novembro de 2007





Lembra-se de lhe contares tudo e de se perder num olhar teu. De palavras poucas, antes de um sorriso. Mais ainda do gelar do corpo perante a tua voz. Rita nunca se esqueceu e remói o dia em que lhe fizeste perceber o movimento giratório do mundo. As lágrimas nunca serviriam para secar um momento, mas apenas para o tornar menos penosa a sua progressão. Esta era inexorável, e Rita entendeu-o bem. Agora , fica o esperar que uns graus de latitute mais à frente tudo voltasse a fazer sentido, se bem nada como dantes.




A frase bateu-lhe três vezes, tornou-se batida e não negou: é minha!


hf


(Paula Rego, a dar de comer)

1 de novembro de 2007


Ainda olhou para trás, com a vanidade de quem se sabe em sentido contrário.
Ana protestava contra a soma inabalável dos vectores que lhe prendiam a alma.
Houve tempos em que se arrancaria do seu lugar, abandonaria o seu caminho e talvez partisse em busca de um reflexo, ainda que o pecado de estar a fugir lhe encostrasse algum arrependimento.
Agora, o tempo é outro. Guardem-se as armas, não com o sentido de que amanhã poderão ser necessárias. Não. Ana vislumbrou todo o seu caminho e advinha que jamais haverá lugar para esse tipo de lutas. Segue no rumo das rodas e conhece o seu destino. Percebeu a pequenez da vida que lhe cortou raizes, mas não lhe deu tempo para florescerem asas.
Percebeu tudo, excluiu-se de querelas irresolúveis e muniu-se apenas do que sabe essencial.
Deixa-se sentada e a vida passa.
hf
(Dali, Elementos Enigmáticos)

24 de outubro de 2007

escrita automática...

sim, serei, pedrinha numa horta de horas e horas que passam, sem que se lembrem de quem fui ou onde estive. limito-me a calcorrear-me num jeito de caminhar sobre mim mesma, já que o chão sou eu, e sobre o chão ando eu, sem mais introspecções que valha a pena referir. e serei, serei, a repetição do que sou hoje, porque serei o que sou, mas sonho com o que serei na rotina que sou. confuso? não, bem simples, mas a escrita automática de mim mesma, pedrinha da horta, flui nesta dimensão pseudo-filosófica de um contexto existencial fútil, que bem espremida poderia ser solapsista...a dimensão, e não eu, ora essa, que eu não sou nada solapsista, porque me sou e me vejo desde o início, mas o fim não o conheço...solapsista, eu! essa agora...

SF

10 de outubro de 2007


A alma tem caprichos e sabe fazer-se obedecer num corpo de um só coração. Ele cede sem resistir, como os pais cedem ao capricho de uma criança bem comportada: ela merece.


Um capricho, embrulhei a palavra e pendurei-a ao pescoço.


O choro por capricho de uma alma infeliz, que insiste para que o corpo fique triste.


Chora comigo!


E a lágrima cai. Não porque o corpo dóia, mas porque é companheiro. Vai com a outra, escuta-lhes os lamentos, sabe-a errada, mas dá-se como errado e cai também.

...

A voz de uma alma cansada faz-se ouvir num corpo que é seu único seu.


hf


2 de outubro de 2007


Ana hoje aparece envolvida numa questão maior. Há unanimidade e todos o afirmam. O Paulo, esse, permanece no seu mundo, mas a Filipa garantiu que lhe viu o agitar cefálico de aprovação. O caso não é para menos, a Teresa desta vez foi demais... como das outras vezes, de tantas outras vezes, mas hoje parece que todos ou quase todos acordaram com os olhos postos no atrevimento daquela personagem. As palavras foram claras e cairiam, bem afiadas em qualquer pessoa que vestisse essa pele, mas não na Teresa. Esta ainda embelezou o espectáculo e verteu lágrimas. Saem-lhe tão facilmente e, ainda assim, têm algum valor, pelo menos para Paulo. Ficou a remoer aquele acenar. Teria sido muito cruel? Patético, como ele só. Ana percebeu-lhe a antecipada hesitação, como a fenda que iniciou a quebra do momento. Filipa iniciou logo de seguida o vacilar. Era o fim, o coração apertou-lhe bem no peito, a testemunhar a sua existência, e Ana preparou-se para adiantar um se calhar cada um é como é.


hf
(Paula Rego)

30 de setembro de 2007


Tenho uma lágrima no canto de olho que insiste em não cair e tu aí tão perto.

Se uma lágrima cair, transparente e isolada, consegui-la-ão ver o teus olhos?

E se os olhos olham, a alma sente?

E se alma queima, o corpo vence a inércia?


Quero fechar os olhos e esquecer-me


Os olhos trouxeram o escuro. O escuro trouxe a dança do tempo, que a despertou. Ana vê os olhos de sempre à espera dos teus.


hf
(ft: Sem título, Chema Madoz)

16 de setembro de 2007


ainda sei o que vestiste ontem porque o prendi no pensamento com uma fita cor de rosa que te ficaria tão bem.
rosa projectar-se- ia no azul dos teus olhos e olharias os meus, banais e sem encanto
o encanto partir-se-ia com a jarra de vidro onde coloquei rosas

rosas. mais uma vez rosas, penso nas rosas

rosa, cravo, já foi, penso em ontem

ontem, estavas cá e o meu coração prendeu-se ao teu

o teu amor não é maior do que o meu: é na medida certa

língua solta, que sabes tu sobre a medida do amor, quero que caias já

e a língua caiu por que o desejo faz-se ordem no teu pensamento


brinco hoje para ocupar o espaço vazio


hf

(fátima mendonça
sem título)

12 de setembro de 2007


Talvez Paula se tenha perdido, ou, sei lá, se tenha mesmo esquecido. Vislumbra-se à saída de um metro e logo se recorda que perdeu a graça do seu olhar. Desconfia que tenha sido num daqueles saltos de quinze centímetros, cónicos, claro, porque só a esses a moda ilumina. Talvez nas calças justas da estação, ou até atrás de uma carteira XL... Enfim, não sabe como, mas sente que se perdeu.

Noutro dia, deu consigo a remoer a ideia de que foi numa noite de Abril, em que adormeceu a chamar por quem lhe limpasse a lágrima.
E se os dias se multiplicam, o calendário lá a surpreende a abraçar uma nova razão.
Sente o eco da própria voz no paradoxal vazio do seu corpo, a automaticidade dos seus movimentos e continua a caminhar.
Quero que o teu beijo me cale a alma!

hf


(joana salvador, sem título)

11 de agosto de 2007

Ando com uma palavra debaixo da língua. Trago-a bem presa, com um daqueles nós complicados que esperam apenas por um movimento único para se soltarem nos teus ouvidos.

Às vezes, quando o escuro da noite cala o impossível, ensaio o gesto num som calado, porque conheço bem as paredes que te separam de mim.
Sei tão bem as letras que ultrapassam o alfabeto e, às vezes, percebo-as a borbulharem na minha boca. Imagino as permutações, os arranjos e as combinações necessárias para que cada letra se toque e todas elas se fundam, dando-lhe voz.

Talvez possa dizer todas as outras palavras e esta se veja obrigada a fazer-se ouvir. Ou, sei lá, se os deuses andarem por perto, sabes já tu de cor tudo o que quero dizer...

hf

6 de agosto de 2007

outras mãos

um dedo e outro dedo, que saudades dos teus dez. Sei-os de cor e nunca me perco na conta. Ontem, encontrei um bem apontado, enquanto comia a fatia do bolo da tua mão. Ensaiei um ar triste e logo senti os cinco afegando-me o rosto. Um autoritário limpou-me a lágrima e obrigou-me a um sorriso. E eu perdi-me nas tuas mãos...










Uma mão lava a outra, as duas lavam a cara. E a alma? Quantas mãos me lavam a alma?






Se perdesses os dedos das tuas mãos, conhecê-los-ias para as recontruires?

hf

26 de julho de 2007

mãos

mãos suadas, de terra e sangue, de morte e pó. olhai-me minhas mãos, pois sem espelho não me sei, não me sou. sou-vos mãos que agem, que vos deixais envelhecer, nas atitudes rotineiras a que vos sabeis submeter prontamente, sem repulsas de maior, sem juízos de valor. cansai-vos sem questões, pois sois labor e ócio, ternura e indiferença, mas sois, porque não vos permito inexistência...olhai-me mãos, e por entre a água de meus olhos que vos turva conhecei-me, que eu já não me sei...

s.f.

24 de junho de 2007

poemas ébrios V

o cubo olhava-se, perplexo
pelo seu aspecto tosco
de granito cinzentão...
achou-se sem graça nem nexo
no mundo... achou-se fosco
e deixou morrer a razão...
resta-lhe a sensação!
autómato com o reflexo
de perseguir própria extinção...

deixa-se então pelo chão...

s.f.

17 de junho de 2007

poemas ébrios IV

"blues de várias vidas que não fui
num excesso de âmago demente,
e duma fúria de não ser outra gente,
sem o cinzento do sangue que me flui
da vontade de ser diferente.

e o coração teima e não anui,
embora pareça condescendente
com a lógica dada pela mente.
cansa-se, e no sentinte que possui
deixa-se doído, decadente.

s.f.

16 de junho de 2007

psudofilosofias agressivas da "treta"

Perturbe-se a infinita procura do certo! Perturbe-se constantemente, pois o certo está empedernido de falácias que o alimentam! A derrota nunca ensinou! Limitou-se a colocar desejos retaliativos sobre si própria, porque a derrota nunca está certa! A derrota é, no entanto, perpétua, de modo que o enaltecimento colocado na felicidade nunca deixa de ser um desejo maior...
Coloque-se uma praga na procura do certo! Deixai prevalecer a derrota! Que tudo desista, e depois morra... e certo tudo se tornará doravante...

s.f.

7 de junho de 2007

Maria,



Ainda se lembra, Maria? Faça o esforço e veja-me menina e moça, como a que saiu da casa de seus pais. Recorde-me num vestido azul de cetim do mais caro da venda. Não!, nunca usaria chita, Maria! Talvez a criada! Pronto, mas com certeza uma chita fina, a mais cara do Senhor Luís.
Abandone esses pormenores e fixe-se no meu sorriso, ao som do canto melodioso do que já ninguém sabe de cor...
Maria, olhe-me nos olhos e veja como não sei mentir. Ouça o que digo e responda-me à altura. Embale-me no seu regaço. Pregue-me um beijo e veja a alegria da mão que a puxará, para lhe dar a brancura de uma flor.

"Acordar é que eu não queria... "

hf

(Paula Rego: a aliança dos ratos)

26 de maio de 2007

poemas ébrios III

cai no copo a desalma
do meu corpo sem se ser.
turpor estúpido, estúpida calma,
estúpido eu, sempre a morrer.

leio os olhos pela palma
num copo que sobe sem descer,
sem perceber que se me espalma
o que devia perceber...

s.f.

24 de maio de 2007

1985 (after Orwell's 1984)

Uma claridade cinzenta, como tudo o resto, foi suficiente para lhe tirar o sono. "Merda! Outro dia igual aos outros!" O enfado dos dias que lhe corriam pela pele não derivavam da ausência de entretenimento, fosse ele qual fosse! Bem pelo contrário, era a excessiva presença de tudo que o sufocava, quando tudo podia, e devia, ser simples.. Não sabia o que sentir, nem sabia porque sentia o que sentia nas circunstâncias em que estava, mas o antagonismo que a lógica criava nas emoções tidas derreava-o. O cansaço de tal luta era tão intenso que as cores deixavam de existir. Era muito cansativo ver fosse o que fosse, quanto mais cores.
Saiu do seu quarto cinzento, entrou no quarto-de-banho cinzento, tomou um banho de água cinzenta, vestiu-se de cinzento, escovou o cabelo e os dentes, ambos cinzentos, e saiu...para o mundo exterior, também ele cinzento. O solapsismo infiltrava-se-lhe sob a forma de ausência de cores, dado inexplicavelmente elas lhe trazerem alguma emoção. Numa repressão lógica da mesma, ia sobrevivendo todos os dias, sem viver. Era ditador de si próprio, e só a pesada embriaguez a que se sujeitou de noite o fez perceber de tal situação...
Quando no dia seguinte acordou, tal reflexão estava extinta, e tudo recomeçou como no dia anterior.

s.f.

13 de maio de 2007

poemas ébrios II

Ah!Merda!
Tanta luz!
Nebulina que se me herda
Arrasta o corpo que me conduz,
Mata a garrafa que me seduz!

Ah!Parte-a!
Estilhaça-a!
Derrama o liquido sobrante
Sobre a culpa asfixiante!
Mata a ressaca em que me pus!

Ah!Morra!
Erro de merda!
Não me tenho mais pachorra!
Atinjo-me sempre d'alma lerda!
Caralho p'ra isto! Porra!

s.f.

11 de maio de 2007

Tédio. Falou-me do tédio. Acho que está contente em ter encontrado uma palavra longe da tristeza e, sobretudo, longe do banal, que lhe confere a excêntrica posição que procura. Se tivesse de definir a minha vida numa só palavra, escolheria o tédio. Repetiu a frase vezes sem conta, talvez umas três ou quatro para me aproximar com exactidão. Não pude deixar de sorrir, mas pouco mais fiz, mesmo muito pouco, especialmente quando me recordo que fui eu quem lhe perguntou sobre a vida.

Estranho. Estranho foi ter respondido. Esperava uma simples repetição da cortesia e obtive mais; possivelmente pela novidade da resposta, deixei um sorriso. Um simples esforço muscular, que tentava dissipar o peso daquela afirmação e me alhear de uma resposta à altura.

Ironia. Ironia foi dizer ele aquilo que só eu sinto.

hf

5 de maio de 2007

poemas ébrios I

atraso meu, insocialidade,
insónia de gente
que sente saudade
de alma diferente.
sem jovialidade,
em morte aparente.
controlo a vontade
de amor ardente,
e vivo a saudade...

não sei ir em frente,
e com pouca idade
cresço decrescente.

e morro diferente...
morro de saudade
por amor ardente...

s.f.

1 de maio de 2007

para os que se julgam sozinhos no mundo

segue-se um texto já bastante antigo de minha autoria, que nunca pensei em exibir a nível pessoal, quanto mais publicado neste tão estimado weblog. depois de o ter dado a ler a uma grande amiga (a única leitora até esta hora), senti-me impelido a publicá-lo. é cru, e revolve-me as entranhas, porque no fundo é uma maneira muito sucinta de me explicar, sendo que permanece mais ou menos actual. mais uma vez, o lápis que escreveu foi guiado pelo álcool e pelo fumo.

um grande obrigado também a hf, pelo estímulo dado.

para os que se julgam sozinhos no mundo:

"Eu não sou eu, somos nós. Existe em mim uma ausência de unidade, como que se várias personagens habitassem o meu corpo e lutassem entre elas pelo protagonismo de se manifestarem como aquele que deveria ser eu. Algumas já existiam de raiz, outras foram aparecendo por força de ocorrências que massacraram a minha estabilidade relativa.

Dizer que sou por natureza simpático e rancoroso é um erro que me imponho a mim próprio. Nunca sou os dois ao mesmo tempo. Vivo-me em situações diferentes, com atitudes diferentes, porque somos diferentes! Nós, a pluralidade na singularidade da personagem que os outros vêem.

A tristeza é, portanto, possivelmente o único sentimento de união que possuo. Sou triste porque o pretendo, ou porque me vejo pretendê-lo. Sou triste porque sim, porque me sinto eu sendo triste, porque assim sou uno, porque sei que sou eu, verdadeiramente.

Procuro o sucesso, mas empurro-me para a queda…apenas porque tenho medo de mudar. E entristeço-me ao saber que desiludo quem me rodeia, por ser sempre alguém que não devo. Por fazer conhecer a quem me ligo a minha natureza poluída e, infelizmente, contagiosa, afectando negativamente quem amo. E isso é imperdoável.

Consequentemente, as culpas vão-se acumulando com a repetição sistemática do erro de procurar a tristeza. E começo a deixar de me suportar ou tolerar.

Talvez para me entristecer…talvez porque sou má pessoa…"

(15/6/2005) s.f.

30 de abril de 2007

mais uma história de coisas

vou olhando para os sapatos a deambular, enquanto me encaro cinzenta num corpo torpe. a alma já foi, e só resta alguma perseverança em continuar o caminho, apesar da chuva me fustigar. ainda vou olhando para cima, e vejo fumo a desenhar-se para fora do corvo que se entretém a debicar as próprias entranhas de consciência. por causa dele estou à chuva, que estupidez! não basta a água, mas o álcool, as cinzas e as lágrimas também me sujam. sinto-me porca, bem como todas as minhas companheiras de função. e ele também, adivinho... mas o que é certo é que parece ter prazer em andar cinzentão, e só eu, gabardina mais velha que ele, pareço acompanhá-lo nesta caminhada à chuva... as lágrimas, essas misturam-se com o chão molhado.

s.f.

25 de abril de 2007



Quando chegaste, encontraste-me morto. Morto, como o tal gato da curiosidade. Curioso, foi não teres feito o esforço de verter um pouco de hipocrisia e imitares os tristes com a perda.
Olhei-te e percebi-te num relógio de dois ponteiros certos, desconfiei que naquele momento não disporias de tempo para mais um acontecimento. Quis ainda espreitar a tua agenda e conhecer a data do registo da minha morte, mas já havias batido a porta.
Não querendo deixar-me ao abandono da dúvida, quis perseguir-te pela cidade e gritar-te em voz alta que eu tinha morrido e que o luto devia ser feito, por uma questão de sossego da alma, mas há qualquer coisa na morte, em que o corpo já não obedece a um desaire mental daqueles.

Deixei-me ficar em paz… até à minha morte.



hf

23 de abril de 2007

chapéu cinzento

Denso, deturpado, cansado. Outrora usado repetidamente por um senhor idoso, cujo ausência de cabelo o fazia ser útil, eis que agora repousa, ao que parece eternamente, no baú das coisas velhas. O característico cheiro a mofo incomóda-o, como tudo o que é frio e eterno que aparenta vir num futro mais ou menos próximo. E numa lógica envelhecida, não se entende útil. Jamais alguém o colocará no cocuruto da cabeça, sendo que o tecido que o estrutura é impossível de ser reutilizado.
Sendo assim, deixa-se estar, num turpor mórbido que não imita a morte, mas que no fundo a é. Não há mais chapéu cinzento para ninguém...

sergio f.

17 de abril de 2007

cefaleias

«Agradeço o milagre farmacológico e numa névoa de cores difusas acabo por tragar aquilo de uma só vez com café. Arre! Ainda sabe pior que com água!

Depois espero. Em princípio as preocupações que suscitaram esta cefaleia não desaparecerão assim por artes do mago, mas talvez haja alguma esperança para esta dor difusa que, diga-se de boa verdade, é irritante com’ó caralho (este vernáculo deveria ser também considerado sintoma da patologia – imagine-se qualquer coisa como “o paciente descreverá uma dor referida à extremidade cefálica, com o uso da expressão “irritante com’ó caralho!””).

Ah! E vou ficando mais lúcido, mas as preocupações não desaparecem, o que me faz pensar: até que ponto não seria melhor ter suportado aquela merda de dor física a isto? Existirá alguma coisa masoquista em mim que me faça procurar constantemente remorsos?» - perguntou o revolver, enquanto arrefecia depois do disparo.

«Não sei! Mas pelos vistos mataste-me, imbecil!»

(reflexão do autor: Ah! Viva o estado delirante do sono e a escrita fácil!)

Sérgio F.

9 de abril de 2007

A couve fica quieta e espera e o tempo passa, com dias de sol, vento, chuva, geada...surpreendentemente resiste, mas não isenta de qualquer lesão que não sei descrever (é-me algo estranho, o mundo das couves). alucina à luz e ao escuro, dando-lhe a impressão que algo se move que não ela, mas se move debaixo dela, arrastando-a sem a mover. algo estranho, deveras, somente justificável pelas águas de chumbo que a regam, pensa ela numa meditação de cerveja, ou vinho, ou qualquer outra coisa que as couves usam para conseguir a embriaguez - como já afirmei, nada sei de couves. e eu a olhar p'rá couve, sem ela olhar p'ra mim...há qualquer coisa que não faz sentido nisto. bem, talvez seja melhor deitar a garrafa fora."


(estava muito bebedo quando escrevi isto)
Sérgio F.

22 de março de 2007

Hoje vi-te num espelho meu...


Hoje vi-te, como espelho meu. O coração apertou-me num corpo que já há muito aprendeu a não se deixar abalar. Olhei-te e vi os mesmos olhos à procura de reflexo. Vi-lhes a ternura de quem se sente ímpar no meio de iguais. Reconheci-lhes a lágrima calada no barulho de um pestanejar mais forte.

Vi-me e vi-te e se o abraço fosse espontâneo, agora senti-lo-ias bem forte; e se a lágrima ainda caísse, seca-la-ias; mas se o gesto calasse a tua solidão por um instante, o curto espaço de tempo que até te dares conta da inutilidade (do gesto); não calaria o meu grito, esse que sai já calado e se sabe eterno.

Talvez tu, ainda aconselhado pelo desespero, acredites em gestos mágicos, em ilusões salvadoras, em respostas perfeitas, mas só a ingenuidade te pode fazer crer que seja eu. A ingenuidade… que vais sufocar com o marcar das rugas e que vai persistir muda, roendo em dor latente e solitária, presa a um corpo que aprenderá mais velozmente do que o coração.

Como conheço bem os teus trilhos! E como desejaria que fossem diferentes dos meus… É possível que o sejam e até isso dói, mas o teu presente está tão próximo do que quero que seja passado.
Rita


hf

(imagem: Isabelle Faria, auto-retrato, 2003)



21 de fevereiro de 2007

| o prego e o mar


estava longe de ser velho. tinha ainda a juventude na fronte. tinha ainda a cabeça cheia de certezas.

da juventude não se libertaria naquela noite. mas estava agora, com certeza, um passo adiante no seu afastamento dos verdes anos.

disse-lhe ela que merecia ele melhor. não conseguiu concordar. mesmo acenar. um aceno teria bastado para quebrar o silêncio que enchia cortante a sala. até os estranhos em volta pareceram concordar com ela. o tirintar da loiça parou em frente no café, tal era o acordo do mundo em geral. ele emagrecia, na sua mudez. ela falava sem brotar som. conversaram durante horas, calado que se mantinha ele, absorto em ruminações tacanhas.
julgava-se pelo que quis fazer, penalizava-se pelo que devia ter tentado, sem nunca abrir a boca. ela cavalgava pelo pântano do injustificável, para nunca admitir o que ele sabia. ele desaparecia de inanição. ela desapareceu do café, só de solidão.

estava cansado de tanto envelhecer. as dores do crescimento quebravam-lhe o corpo, as lágrimas brotaram finalmente de tanta dor. e foi para casa, afundado como prego em maré vaza.

human behaviour

if you ever get close to a human
and human behaviour
be ready to get confused

there’s definitely no logic
to human behaviour
but yet so irresistible

there’s no map
to human behaviour

they’re terribly moody
then all of a sudden turn happy
but, oh, to get involved in the exchange
of human emotions is ever so satisfying

there’s no map
and a compass
wouldn’t help at all

human behaviour
b. gudmundsdottir/n. hooper debut.björk1993

16 de fevereiro de 2007

Novidades












Diz que se esqueceu. Hoje, já não é como ontem. Parece que o relógio fez cair a última folha do velho calendário e agora o vento grita por mudança.


Não se lembra bem, mas era diferente. Engraçado como a distância do tempo pode transformar a memória. Talvez as imagens que reproduz estejam afastadas do real, como naqueles filmes que voltamos a ver anos depois e verificamos a sua falta de brilho.
Talvez não houvesse brilho, mas apetece tanto dizer: que saudade. O despertador dá o pontapé do costume e o hábito desfaz-te no esquecimento.

Prioriridades.

Calendários.

Horários.

Fala-me de ti e dessa tua nova vida.

hf

7 de novembro de 2006

Patético...

(o espantalho, paula rego, 2006)
Ontem, encontrei-te perdido. As voltas, o mundo tem voltas e julguei-as tão lineares quando te apercebi de novo preso entre olhares.
Como pudeste?! Merece bem a indignação. Ainda te custa ver a falha do sorriso, disseste. Admitiria ver esse comentário a um dos meus patetas, mas a ti. Ia dizer para apoio metafórico que me cortou o coração, mas o único corte foi o de eventual fissura de comissura labial ou de umas quantas fibras musculares abdominais, que, por fadiga, se quebraram durante o meu riso. Quis mesmo amparar umas lágrimas, como fazem os que muito se riem, ensaiei o gesto, mas em vão. Há coisas que não consigo fazer, uma delas é desperdiçar liquido lacrimal.
Meu anjo, se alguma coisa te ensinei é a ver o mundo com apenas dois lados: um de cor e outro de não cor, nada mais. Escolhe. Com o resto, sem cor, sabes o que deves fazer.
Podia repetir-te tantas outras palavras, mas não o faço, até porque apenas se repetem as palavras quando são novas ou (nos) tentamos convecer.
Já disse demais.
hf

14 de setembro de 2006

Crescer capitalista, num poema pobre e pretencioso

Insiste em brotar, mas sabe que morre.
Não pensa nisso, dói-lhe.
Produz e compra, vive assim.
Sabe que não se merece, mas
Puta que pariu se isso interessa.

Ninguém merece!

Ganha e gasta
e Ganha e gasta
e Ganha e gasta...

e Sabe que quando morrer, o caixão será de carvalho,
Forrado a veludo e cetim
Com o melhor fato vestido...
e, Estranhamente, pensa-se feliz assim.

Sérgio Figueiredo

7 de setembro de 2006

Vícios do Coração



Ouvi dizer que hoje era o dia. Vesti-me em pura obediência ao espelho. Ditou-me que vestisse o que só uso por vezes, mas que até eu sei que me cai bem. Saí à rua com o pé direito, que molhei imediatamente por estar a chover. João, empresta-me o guarda-chuva! Molhei-me todo o caminho, João já não está. Ainda o chamo. São hábitos que se criam e insistem em ficar. Desconfio que é um vício do coração. Às vezes, conto-lhe deste meu hábito. O telefone não transparece a cara, mas sei que não gosta. Ainda assim, viciada que sou, conto-lhe e logo lhe peço desculpa por o fazer, o que o irrita mais. Mudemos de assunto e tu estás bem? Desde que saiu de casa, nada mais falamos do que trivialidades. Não sei se algum dia, os assuntos foram outros, mas os de hoje, sinto-os vazios. Assim, como a casa, o quarto, os brinquedos, os livros, tudo que ele deixou e já nem o sabe procurar.


Patética, sim, sou. Nunca pensei usar das habilidades mentais que reconheço a quem chamava de velhos. Agora, sou eu a velha, que deixei de viver e agarrei-me a um filho, que já não é meu.

Sim, eu sei tudo, mas o coração tem vícios.

hf

(Visitação, Graça Morais)

Nasceu

Nunca lhe agradeci o texto. Guardei-o e deixei-o como uma novidade para a edição 8, mas a demora, que me envergonha, faz com que parece injusto não o publicar. Sérgio Figueiredo: a primeira participação neste porumoutrolado.

Nasceu, conheceu a mãe e afeiçoou-se a ela. Foi conhecendo o pai, e afeiçoou-se gradualmente, bem como aos irmãos.
Cresceu...
Começou a reparar nas outras pessoas, e afeiçoou-se a elas. Fez amigos dessas pessoas e foi ganhando a afeição deles. Entrou na escola e afeiçoou-se pelo conhecimento. Fez desporto e afeiçoou-se pelo corpo.
Cresceu...Comprou coisas, às quais se afeiçoou, e sentiu-se nelas.
Cresceu...Teve amores pelos quais se afeiçoou e desprendeu, afeiçoando-se à liberdade de não estar preso a ninguém...
Cresceu...
Saiu de casa e entrou na faculdade, e afeiçoou-se à liberdade e responsabilidade.
Cresceu.....
....
foi-lhe tirado o gozo da vida....
....
suicidou-se...
Morreu...
(a dor não faz crescer)

Sérgio Figueiredo
(ok, o texto é algo drástico - se ignonarmos quão pobre é a escrita e eventuais erros ortográficos ou gramaticais - acaba por ser bastante honesto, embora não represente o eu que sou - só para não existirem alarmismos)

28 de julho de 2006

Conversas de Jardim

Dizem. Dizem que estou doido, que oiço vozes que não existem. Raios, se as ouço se elas me falam se me compreendem se me dão conselhos se me ouvem, serão falsas? Não estarão os outros doidos?Ontem saí. Fui ao parque. Sentei-me, perdi-me. Não sei o que foi, se aquela folha simples, seca, quente, a dançar com o vento, se aquela calma, aquele silêncio, aquela deixa que me conduziu novamente a este questionamento interior.
Sei que estou doido, mas com a minha demência consigo ver que todos à minha volta não estarão assim tão sãos como a sociedade os cataloga:
- o médico que me vê de relance todos os dias, sim o mudo, nunca lhe vi um olhar feliz, só aquele olhar ferido, cavo e seco;
- a enfermeira que me trata, sim a cega, fala de forma cadente todo um discurso à muito decorado e que hoje é estandardizado para todos aqueles que pela frente lhe surgem. Muito provavelmente quando vai deitar os filhos repete: passas-te um bom dia? aleijaste-te? falas-te muito?
- a senhora da comida, sim a surda, nunca compreende aquilo que lhe é dito, de tão ocupada que tem a cabeça de vento…
No entanto, perante todos eles sou eu que estou doido. Como disse? Concordo, acho que tem toda a razão, claro mas todos eles estão mais ou tão doentes como eu, é tudo uma questão de curvas.
Hum… pois… talvez… Sabe, estive a ler e sem querer percebi, é tudo uma questão de perspectiva, de presentes e de futuros.
Não é disso que falo. Repare no meu caso, do passado, não sei, para mim não existe, de nada me serve. Presente não tenho, é sempre igual, e se é igual não é mais que um pretérito continuamente a repetir-se. E futuro, desconheço mas surge como um pretérito mais-que-continuamente a repetir-se. Não sei se é assim com todos os que estão aqui, comigo é, e com grande parte daqueles que se dizem sãos também é, pelo menos comportam-se como se fosse. É como um caleidoscópio, mistura-se e dá sempre uma imagem diferente, mas a base é sempre a mesma…
Mas sabe, e isto para terminar por hoje a conversa, porque se faz tarde, e isto de me perder no parque pode dar para o torto, ainda vem uma cega procurar-me, a mando de um mudo, cujo recado foi dado primeiro à surda.
Sabe, e se não o sabe fica a saber, eu pelo menos sei do que sofro. Sim sei, talvez não esteja assim tão mal. O que eu sofro é de conversas intermináveis com o senhor Folha e o senhor Silêncio, enquanto eles vivem na ilusão, ou melhor no limbo de um diagnóstico ainda não pesquisado.

Luís Fernando

29 de maio de 2006

diz que tem medo

Diz que tem medo e nem sei por quê. Acho que é daquelas coisas: uns têm muito, outros, nenhum.

Medo!

Quando o ouvi pela primeira vez, ainda lhe dei alguma razão. Enfim, pensei, é um pateta! Mas até os patetas merecem sentir o conforto de um 'tens razão'.

Mais tarde, ou até nessa tal primeira vez, acrescentei alguma coisa sobre a irracionalidade daquele receio. Ego por ego, que não fique também o meu ferido: se penso, digo, de um modo ou de outro.

Hoje, aparece com a mesma conversa. Tem medo. Tem medo e porque tem medo. E quando não o diz, deve ser porque aqueles olhos enfezados o antecipam e substituem na voz.

Não tenho paciência para pessoas assim. Medo? Onde já se viu? Pronto... deixe-mo-lo! Apaga a luz, porque quero dormir. Há cada um. Só a mim...


hf

15 de março de 2006

Carta aberta a um jovem, enquanto puto

Caríssimo:

Constou-me há pouco que Vossa Excelência não tem ideais... Que anda ocupado com afazeres mundanos, que, desde tenra idade, o ocupam sobremodo. Deixou de os ter quando, numa esquina mal frequentada, se perdeu de amores por uma adolescência tardia, que o inundou até tarde na década dos vinte... Tenho pena...

A vida corre-lhe de feição, sem ralações, ocupado que está a gozar as conquistas de outros. Nada o preocupa, não pensa no mundo, gravita sem anseios... "Sociedade" é palavra desconhecida, derivada talvez do "social", que anda a par das festas bem frequentadas. "Pobreza" vem de "pobre", que são os habitantes de um país de terceiro mundo (cujo nome te esforças por recordar), longuínquo demais para abafar o cheiro do perfume da moda... "Reflexão" vem do "reflectir", fenómeno indispensável no mirar do espelho, religioso ritual saturnino...

Tenho pena que o menino jovem só cresça quando convém, que resolva militantemente que os ideais são bafientos e decrépitos, que não ouça quando a Democracia Representativa chame... Tenho pena que fique em casa em dias de eleições.

As quimeras de outros carregam nos ombros o mundo de hoje. O teu mundo, menino jovem, está cheio de interrogações não pensadas. Os ideais são plena aspiração do espírito... O que dizer de ti? O tua sociedade (vá lá, procura que hás-de encontrar significado) vai oca... vazia que está de perfeição idealizada, preocupado que andas com aspirar por nada...

Cordialmente

S.Maria

14 de março de 2006

Momentos








Cai a noite devagarinho.
Joana chora e o pai sozinho.

O que vêm os olhos da minha vida?
Por onde caminha o que perdi?







O globo que nos separa tornou-te pesado no meu coração. Ainda desenho as rotinas dos teus penares, mas já não as sinto. Adivinho o teu pensamento e quero esquecer que pensas em mim.
Parti e vejo-me morrer.






Ou talvez não… Talvez conheças páginas de um livro que nunca li e já saibas tudo. Saibas que não há perder, mas sim deixar o sol seguir-se à lua. Talvez conheças como se calam as lágrimas da saudade. Oh! Tomara!


Quebrou-se. Não voltará.

Percebi bem quando o metro deixou te deixou de alcançar.






helder filipe

Brisa

Brisa

No ar sente-se um cheiro constante. Deixa-nos envolvidos sem nos prender. Ouve-se um embalar lento, ritmado, constante. O céu azul ponteado por pequenos farrapos de nuvens... E continua -se a ouvir o ritmo agora associado a uma brisa perene, omnipresente que nos afaga como uma mãe embala o filho. Ali no cimo da praia está um homem como tantos outros. Só, acompanhado, perdido achando-se...
Escreve lentamente, ao ritmo que o mar dá na sua cadência, afagado ainda pelo roar lento quase inaudível da omnipresença.
Levanta o seu olhar. No céu estão várias gaivotas rodopiando sobre si, nos seu contínuo afazer ditado pela sua natureza. Ao longe um casal namora, talvez influenciado pela perenidade que a brisa conduz ele agora revela a realidade do seu amor, e o homem que escreve volta novamente a sua atenção às suas folhas e ao seu lápis. A alguns metros dali, num carro está só, outro homem. Tem o olhar fechado, nos olhos verdes a profundidade mariana e pacífica de uma vida sofrida. A escrita prossegue... O papagaio caiu, a criança que praticava as façanhas drumondianas grita de desconsolo, o seu pai com toda a perenedidade e o ritmo que a idade lhe confere, volta a pôr no ar a frágil aeronave e acalma o filho... No papel ganha forma algo:

Um fim
que se procura,
um desejo
que se alimenta
num ser
que ainda não é

Um caminho
que se alarga
um peregrinar
que não se esgota
num descobrir
que cada dia tens uma nova face

O homem escreve. No papel azul estão apenas algumas palavras, que na sua simplicidade mudarão o rumo de uma vida. No ar propagado pelas ondas de ar feito as estações climáticas vivaldianas escorrem a chuva invernal.
Outro homem leu as palavras escritas. Nele o resultado foi imediato, como as primeiras enxurradas de Inverno, o seu mundo acabou com o diagnóstico ali sentenciado... Tudo aquilo que gostava de fazer acabará. Amavelmente pediu para fechar a janela devido à brisa.

O homem está agora num restaurante. O ruído desorganizado, de várias dezenas de clientes a discursarem sobre tudo, envolve-o: as aulas correm bem, ontem tive uma reunião com o chefe, amo-te, a 'vó 'tá pior, 'tou sim o papel que tens que trazer é o azul, para mim pode ser frango estufado, podia-me trazer a conta faz favor. Mas a sua atenção está apenas focada naquela mulher que está à sua frente, tal como ela noutros tempos tinha estado em reciprocidade na praia. Agora ela diz-lhe que é o fim, as coisas já não são iguais, a novidade terminou. Tudo é mais simples se acabassem... O mundo desaba novamente como o caminhar já não fizesse sentido...

Escrevo rápido nervosamente já por várias vezes alterei o que primeiro tinha escrito risco uma e outra vez. Paro releio reescrevo tiro as meias palavras ponho outras preparo o instrumento que me levará ao mais baixo patamar dantesco ligo o aparelho de música. É tudo frenético impensado inimaginado desligado da realidade que até aqui vivi. Ponho a rodar a sétima sinfonia escrita pelo bonense. A música arranca. Chega ao segundo andamento. A cadência começa lentamente, lentamente, piano depois cresce lentamente, torna-se mais forte, toda a orquestra se vê envolvida depois da estafeta entre cordas e sopros, todo o ambiente está imersa, a sua cabeça ausenta-se momentaneamente subiu patamares, quando regressa ao seu mundo o tema inicial já saiu e já voltou com nova face. A sua também está diferente, os olhos estão marianamente pacíficos. As coisas passam-se mais rápido sacadicamente move a sua mão acerta pega no revólver encosta-o à sua fronte encolhe o indicador direito o segundo andamento terminou o corpo caiu sobre o papel nervosamente escrito cujo peso era suportado por um outro, azul. O terceiro andamento começa. Ali, já só o ramo de gardénias brancas se move ainda impulsionada pela brisa perene e omnipresente que recebe nos seus braços a nova realidade.

Foi um fim.
Um fim de dia. Ali no quarto, desfolha o jornal, as notícias quase sempre trágicas que alimentam esse estômago cerebral sedento das desgraças alheias, a novela dos amores e desamores que como começam acabam, as novas descobertas científicas que remudam as mudanças de destino que o anterior desconhecimento impunha, o concurso de fotos ganho por uma estranha imagem de uma praia semideserta com um casal, um pai e seu filho, um velho sentado e um carro próximo dele.
Parou para pensar, em como a vida muda tão rápido, como o interior pode ser alterado num constante crescer assente no passado olhando o futuro, parou a brisa fez entrar pela janela uma folha azul gasta pelo tempo. Levantou-se, pegou nela e leu:

Um fim
desejado
Alimentado em si
no seu ser.

Num caminho
complexo,
feito em parceria,
com um vento perene e omnipresente.


Luís Fernando

CARTA

Valparaíso, 30 de Março de 2006-02-05


Pai,

Como já deves ter percebido escrevo de Valparaíso. É verdade, já cheguei ao Chile!! A última vez que escrevi estava em Fortaleza, desde então muito aconteceu…
Para cá chegar, viajei por terra e por mar, aproveitei boleias de camionistas, apanhei longas carreiras de autocarros e andei um pouquito a pé (para aí uns 500 km). Mas está a valer a pena. O Mundo é um poço de aventuras, um livro de conhecimentos, um filme de culturas diferentes, tudo reunido num grande teatro, que é esta vida em que nos encontramos.
A verdade, é que para poupar algum dinheiro aproveitei para atravessar o Brasil à custa de boleias, ou a pé. Com isso, poupei uma “pipa de massa” ao mesmo tempo, que pude viajar com maior segurança porque a inconstância dos banhos, e a facilidade com que se adquire o sotaque brasileiro permitiu-me passar diversas vezes apenas por mais um sem terra a caminho da grande cidade… Por outro lado, esse mesmo aspecto dificultou-me sempre a vida quando cheguei às cidades e tinha de procurar um lugar mais limpinho para pernoitar. Nada que não se resolvesse com recurso com uns reiais à vista… Assim, conheci Manaus, parte da Amazónia, o Amazonas (de facto uma das paragens foi no meio de um acampamento índio), Brasília, São Paulo, Rio, Porto Alegre, Foz do Iguaçu, até chegar à Argentina.
Aqui a falta de dinheiro aguçou o espírito e arranjei uns trabalhitos. Em Buenos Aires, trabalhei na ópera a vender bilhetes e a encaminhar os melómanos para os seus respectivos lugares ao mesmo tempo a que assisti a várias representações desde a Flauta do Mozart, ao Holandês do Wagner ou o Barbeiro do Rossini. Pelo meio aproveitava os dias para limpar as latrinas de um clube de tango onde diz o dono à boca cheia (o que eu duvido seriamente) o Piazzolla começou a carreira.
Após angariar alguns trocos, visitei o outro lado do Rio da Prata: Montevideu.
Aí parei um pouco. Seguindo o teu conselho de viver cada dia como se fosse o último e cada segundo como se fosse o primeiro, perdi-me. Acho que por momentos pensei ter encontrado o meu grande amor. Infelizmente foi apenas mais uma paixão (que enquanto durou foi realmente bom) e depois de um mês sentindo-me como tudo aquilo que limpei no clube de Buenos Aires, deixei o Uruguai. As mulheres sul americanas, têm aquilo que não dá para descrever, é a maneira como falam, andam, sorriem, olham, eu sei lá...
Tudo é diferente neste mundo, a miséria é enorme e ao lado de uma favela cresce um condomínio fechado com segurança à porta. Mas, mesmo com toda esta pobreza é impossível não reparar a alegria com que se empenham no dia-a-dia, e a forma alegre como olham para o muito que já possuem.
Segui depois em autocarro pelas Pampas, atravessei os Andes. Aproveitei para fazer algum turismo de montanha e subi até meio do Aconcágua, ou melhor até onde o mal da montanha deixou…
Depois dessa aventura cheguei a Valparaíso e agora é tempo de gozar a praia no oceano Pacífico e começar a adaptar-me às águas deste oceano.
Este é o momento para agradecer à mãe tudo o que me ensinou em relação a estar na cozinha e a tirar o melhor partido dela. Graças a isso, arranjei um trabalho como ajudante de cozinha num cargueiro que vai partir amanhã. Finalmente vou quase chegar ao Pólo Sul (primeira paragem em Tierra del Fuego), acho que vai dar para sentir o frio… Depois seguiremos em direcção a Wellington na Nova Zelândia onde deixarei o navio. Pelo meio paragens nas Galápagos, ilha da Páscoa e Tahiti. Belo cruzeiro…
Antes de terminar quero dizer que as saudades cercam-me todos os dias. A solidão é sempre uma constante embora envolvido por tanta gente e com tantos contactos já estabelecidos (já comprei outra agenda para guardar as moradas, telefones e os mails de tantos conhecidos). Procuro sempre não me esquecer de todos os teus conselhos, mas isso por vezes não chega. Olho sempre para traz como que a ver um filme de viagem, não esta mas toda aquela que fiz pela vida, e lá encontro o alimento e o conhecimento necessário para enfrentar os obstáculos que tenho pela frente. É como se tudo fosse um fio condutor que por vezes, se cruza fazendo um nó que não temos que romper mas antes apertar mais, e que permite a chegada de um outro fio para a ligação ser mais longa e segura ou simplesmente abre a hipótese de novos caminhos serem estabelecidos.
Bem deixemo-nos de filosofias (é o que faz estar só), mando beijinhos para todos aí em casa, mais que tudo quero que saibam que está tudo bem pese embora os breves assaltos de solidão. Junto envio algumas das muitas fotos que tenho tirado, embora não seja possível ver já tornei a fazer a barba, por isso não se assustem e acreditem sou mesmo eu…
Antes de terminar queria dar os parabéns à Ana pelo aniversário (não me esqueci, mas no meio da Amazónia não há telefones, e depois não fazia sentido com tanta coisa para dizer e tão pouco tempo); agradecer a encomenda que a mãe mandou para o Rio (ainda estava muito saborosa) e avisar que espero estar na Nova Zelândia daqui a três meses (mais semana, menos semana) e ficarei por lá um mesito, portanto: mãe não te coíbas de mandar outro.
Bem, agora é de vez, um grande abraço e um beijo cheio de contradição por querer estar aí, mas estar tão bem por aqui estar.


João





Luís Fernando

25 de janeiro de 2006

E se...


Agora vai anoitecer.

A noite segue-se ao dia.

Durante o primeiro período, devemos dormir. Desse modo, recuperarermos força para o trabalho. É isso que devemos fazer durante o dia.

Há pessoas que não trabalham, ou porque são muito novos, devendo, por isso estar no período de formação, ou porque já são velhos, tendo já trabalhado. Mas, regra geral, todos trabalham.

A maior parte dos que trabalham fá-lo exactamente durante o dia, embora haja profissões em que se trabalha durante a noite.

O trabalho fortalece o Homem.


E se o pano cair e nos perdermos.

E se refutar tudo o que disses num qualquer trajecto alternativo.

Afastar-me-ei ou ficarei mais próximo?

E o peso de ter traído, suportá-lo-ei?


E se cair e repetidamente protestar um grande NÃO até ao fundo, onde o eco já não se reproduzir e me afastar excruciante do quadro e do giz?

E se ficar inexorávelmente na excruciante dúvida até sentir o desespero do vão? Ou não o sentirei?

E se o meu traço se prender ao desenhado?


E se...


A noite chegou, devo-me preparar para dormir...

17 de janeiro de 2006

Ti, ti, ti. Gosto mais de ti!


Vá lá não me deixes para último. Pronto, não sei jogar bem à bola, mas, para último... Fico sempre eu e o outro. Mas o Manel é um caixa de óculos, é natural que ninguém o queira. Até para bem dele. Se uma bola apanha aqueles óculos desprevenidos... A mãe não vai gostar. É coisa para custar caro. Mesmo assim, não gostava de ter uns óculos.

Uma vez a Professora disse-me que eu via mal e devia ir ao oftalmologista. Calei-me. A minha mãe não era tão atenta para perceber que a distancia do televisor se aproximava à medida que se afastava aquele dia.
A Ana era minha amiga e deixou-me sempre copiar a lição por ela. Como tinha a letra bonita... Nunca gostei da palavra caligrafia, associo-a a um tempo de Senhor Farmacêutico, Senhor Prior ou, pior, Senhor Professor Oliveira Salazar. A Ana usava muitas cores. Também não gosto de cores. Mas ela era bonita, ainda assim.

Ao perto tudo é mais fácil porque se dissipam os erros e vemos melhor.

Hoje vejo-te melhor, mas ainda me importo quando me deixas para último.



hf
17. Jan.2005
Biblioteca do HGSA

7 de janeiro de 2006

Notas de um Presidente de Administração

Pouco disse à amálgama de gente que se contorcia de nervosismo à sua frente.
inexperientes.
perdidos.
temerosos.

"Duas ideias a transmitir: case mix e que estamos perante um hospital que tem 503 computadores (ou terminais de computadores, como eloquentemente distinguia) e 304 camas."

Podia ser este o garatujo defronte de tão bem falante doutor. Uma questão pertinente: o que é o case mix? Nem ele saberá, embora todo o seu léxico desaguasse amiúde no case mix. Talvez tenhamos que mudar o nosso palavreado...
Quanto às camas e computadores.... não sei mesmo... acho só curioso... Sinais dos tempos que correm; onde os computadores são mais referenciados do que a capacidade hospitalar... doentes ou doenças... ou mesmo as inquietudes nas vidas de quem dormita em camas hospitalares. Provavelmente tal facto melhora o case mix... Quem sabe?

bom ano .... ;) s.chacim

2 de janeiro de 2006

E quero que tudo corra muito bem!


E que tudo corra muito bem! Ela disse-o bem sentido. Ele sentiu-o bem perto. Há muito que esperava o tudo que agora lhe parecia bem pouco.
As palavras fizeram-se eco nas paredes ainda pouco alicerçadas. João batia-se no silêncio e arduamente tentava avaliar um passado pronto a arrefecer. Era a frase perfeita, que ele próprio diria sem margem para qualquer crítica. E o passado? Longe de perfeito, sabia-o sempre assim, mas começara a perder-lhe o rasto.
O vento levou-lhe os pensamentos e adiou-os: Amanhã, pensará nisso!
hf
2 de Janeiro 2006
Um excelente ano!