Brisa
No ar sente-se um cheiro constante. Deixa-nos envolvidos sem nos prender. Ouve-se um embalar lento, ritmado, constante. O céu azul ponteado por pequenos farrapos de nuvens... E continua -se a ouvir o ritmo agora associado a uma brisa perene, omnipresente que nos afaga como uma mãe embala o filho. Ali no cimo da praia está um homem como tantos outros. Só, acompanhado, perdido achando-se...
Escreve lentamente, ao ritmo que o mar dá na sua cadência, afagado ainda pelo roar lento quase inaudível da omnipresença.
Levanta o seu olhar. No céu estão várias gaivotas rodopiando sobre si, nos seu contínuo afazer ditado pela sua natureza. Ao longe um casal namora, talvez influenciado pela perenidade que a brisa conduz ele agora revela a realidade do seu amor, e o homem que escreve volta novamente a sua atenção às suas folhas e ao seu lápis. A alguns metros dali, num carro está só, outro homem. Tem o olhar fechado, nos olhos verdes a profundidade mariana e pacífica de uma vida sofrida. A escrita prossegue... O papagaio caiu, a criança que praticava as façanhas drumondianas grita de desconsolo, o seu pai com toda a perenedidade e o ritmo que a idade lhe confere, volta a pôr no ar a frágil aeronave e acalma o filho... No papel ganha forma algo:
Um fim
que se procura,
um desejo
que se alimenta
num ser
que ainda não é
Um caminho
que se alarga
um peregrinar
que não se esgota
num descobrir
que cada dia tens uma nova face
O homem escreve. No papel azul estão apenas algumas palavras, que na sua simplicidade mudarão o rumo de uma vida. No ar propagado pelas ondas de ar feito as estações climáticas vivaldianas escorrem a chuva invernal.
Outro homem leu as palavras escritas. Nele o resultado foi imediato, como as primeiras enxurradas de Inverno, o seu mundo acabou com o diagnóstico ali sentenciado... Tudo aquilo que gostava de fazer acabará. Amavelmente pediu para fechar a janela devido à brisa.
O homem está agora num restaurante. O ruído desorganizado, de várias dezenas de clientes a discursarem sobre tudo, envolve-o: as aulas correm bem, ontem tive uma reunião com o chefe, amo-te, a 'vó 'tá pior, 'tou sim o papel que tens que trazer é o azul, para mim pode ser frango estufado, podia-me trazer a conta faz favor. Mas a sua atenção está apenas focada naquela mulher que está à sua frente, tal como ela noutros tempos tinha estado em reciprocidade na praia. Agora ela diz-lhe que é o fim, as coisas já não são iguais, a novidade terminou. Tudo é mais simples se acabassem... O mundo desaba novamente como o caminhar já não fizesse sentido...
Escrevo rápido nervosamente já por várias vezes alterei o que primeiro tinha escrito risco uma e outra vez. Paro releio reescrevo tiro as meias palavras ponho outras preparo o instrumento que me levará ao mais baixo patamar dantesco ligo o aparelho de música. É tudo frenético impensado inimaginado desligado da realidade que até aqui vivi. Ponho a rodar a sétima sinfonia escrita pelo bonense. A música arranca. Chega ao segundo andamento. A cadência começa lentamente, lentamente, piano depois cresce lentamente, torna-se mais forte, toda a orquestra se vê envolvida depois da estafeta entre cordas e sopros, todo o ambiente está imersa, a sua cabeça ausenta-se momentaneamente subiu patamares, quando regressa ao seu mundo o tema inicial já saiu e já voltou com nova face. A sua também está diferente, os olhos estão marianamente pacíficos. As coisas passam-se mais rápido sacadicamente move a sua mão acerta pega no revólver encosta-o à sua fronte encolhe o indicador direito o segundo andamento terminou o corpo caiu sobre o papel nervosamente escrito cujo peso era suportado por um outro, azul. O terceiro andamento começa. Ali, já só o ramo de gardénias brancas se move ainda impulsionada pela brisa perene e omnipresente que recebe nos seus braços a nova realidade.
Foi um fim.
Um fim de dia. Ali no quarto, desfolha o jornal, as notícias quase sempre trágicas que alimentam esse estômago cerebral sedento das desgraças alheias, a novela dos amores e desamores que como começam acabam, as novas descobertas científicas que remudam as mudanças de destino que o anterior desconhecimento impunha, o concurso de fotos ganho por uma estranha imagem de uma praia semideserta com um casal, um pai e seu filho, um velho sentado e um carro próximo dele.
Parou para pensar, em como a vida muda tão rápido, como o interior pode ser alterado num constante crescer assente no passado olhando o futuro, parou a brisa fez entrar pela janela uma folha azul gasta pelo tempo. Levantou-se, pegou nela e leu:
Um fim
desejado
Alimentado em si
no seu ser.
Num caminho
complexo,
feito em parceria,
com um vento perene e omnipresente.
Luís Fernando
2 comentários:
Um elogio à palavra trabalhada, à frase burilada... que resulta num ritmo impressionante que transborda ao longo de todo o texto. espero ler mais textos. espero que te tornes um residente habitual destas bandas...
s.chacim
o autor agradece e vai tentar aparecer mais vezes por estas bandas...
Luís Fernando
Postar um comentário