24 de abril de 2010




Quando o sono me pesa, assim me pesa a alma. Cai um pano pelos meus olhos, que, então obscuros, veêm pouco mais senão o meu sofrimento. É como se acordada, me mantivesse viva, consciente do mundo, atarefada a ocultar a dor.. Ou talvez tudo isto seja a minha propensão para dramatizar, e reflita nada mais do que a minha incapacidade para interpretar o meu próprio cansaço.

Rita, sempre severa consigo mesmo, acabaria por escrever a Tiago: Não me sabia dramática, exagerada e pouco sensata, mas parece que o sou e dói-me tanto.

Tiago teria as palavaras certas para lhe silenciar a dor. Rita saberia sempre não pertencer à normalidade, essa trivialidade de ser confundido como os demais, mas defender-se-ia, refugiando-se nos que a amariam como a ninguém mais.

(pic:fatima faria)

13 de abril de 2010

"Não diria a ninguém mais, mas digo-te a ti. Às vezes, o meu coração pára, e as lágrimas soltam-se sem pedir licença e sei-me infeliz. Revolto-me contra os que dizem que esta dor é natural, porque a queria só minha."

A voz não se cala, enquanto o coração nao deixar de se sentir.


21 de março de 2010

Numa noite qualquer, a vida dará voltas. Tu esperarás por mim, do modo como sempre espero por ti. Encontrar-nos-emos um no outro, e contaremos a rir o medo que cada um tinha que fosse só ele a gostar. O riso dará outro riso. Os olhos tocar-se-ão de um modo que só a alma vê. E os nossos passos saberão que encontraram o verdadeiro sentido de caminhar.

3 de março de 2010


É de manhã que os sonhos se acordam e se agitam, porque, à noite, já não têm espuma. tudo o que resta é um sal seco de lágrimas perdidas ao bater do relógio.

(laura owens)





Numa noite fria, o inverno aleija os calos e devolve-nos a idade.
Andar cansa e dói e recordamo-nos de outros tempos em que o roxo do frio não nos intimidava. Agora, nada apetece, e já nos esquecemos por que devemos caminhar.

O Paulo, a Rita, a Maria, a Joana, a Teresa, o frio de quem já não nos aquece.

Hoje a casa é grande, e vivo só.




***

Se a minha alma mirrar, como a minha cara, não me deixes cair, mas solta-me. Solta-me como se soltam as aves para um mundo lindo e cheio de cor, porque só a ele pertencem, e deixa-me ir. Por mais mirrada que esteja, lá encontrarei um caminho diferente do da gravidade.

Marlene Dumas

12 de fevereiro de 2010


Na verdade, és feliz, tu é que não sabes. Uma vez por outra lá se encontra um atrevido que, embuído de um qualquer rasgo de cigano de feira, acha que nos pode ler no primeiro suspiro. No primeiro instante, Rita ficava chocada por dentro, e expressava um sorriso por fora. Depois, a relação desequilibriva-se: toda ela risos com o atrevimento do pobre. Era vê-la a contar ao José. E disse-me isto passado dois!, dois minutos depois de nos termos conhecido, não é delicioso?
Coitado.
Coitado?! Que se meta na sua vida, que não lhe pedi nenhuma opinião!

8 de fevereiro de 2010


Há uma casa azul, onde tudo se passa. Fica para lá de um rio que já pouco corre, mas que sempre se agita em noites de inverno. Fica perto de um igreja de sinos atrevidos, que tocam desconcertados, ao sabor do vento caprichoso.
É nessa casa que nascem as melhores histórias, memórias recontadas com brilho, que aquecerão corações mesmo quando a lareira deixar de ter fogo. Uma casa com apenas três janelas, em que as madeiras ouvem o choro e o riso de quem se ama, de quem de desencontra com a vida e faz tudo para se reatar; onde a música se ouve mais alto e o fogo é sempre mais quente.
Um dia, ganho coragem e pedirei para lá entrar.

(chagall)

30 de janeiro de 2010

(Augusto Alves da Silva, Ferrari, 1999, Ilfochrome print
at Cirrus @ Serralves: Sem saída: ensaio sobre o optimismo; de 23 Outubro a 19 Fevereiro 2010)

Passava mirando a vida desprezada. Olhava-a nos olhos renegando-a ao abandono. O gesto ilumina a sala colorida, plena de luxo. Ostenta a pose de quem sabe nada precisar. A vida fita-o. Num encolher de ombros prossegue com a mesma atitude.

schacim ;)

25 de janeiro de 2010


Uma vez por outra, nem se fala de amor, mas de tanta outra coisa que, frequentemente, parece gravitar como pequenas luas em seu redor. Rita falava da sua idade. Samuel, atento, escutava-o como se a um profeta.

Sabes, contava-lhe, o pior não é o que encontro no espelho. Com isso posso eu bem. Ele não duvidava de que o espelho não a amedontrasse. Rita tinha no espelho o seu maior aliado. Eram os seus olhos que o viam. Eram os seus olhos que se viam reflectidos num brilho inegualável. São os olhos dos outros! Esses que me matam, me dizem que o tempo passou e que devo mudar.

Samuel vislumbrou o seu mundo invertido: como poderia a mulher que aquele pobre ser tanto admirava estar insatisfeita consigo mesmo, a ponto de considerar a eventual opinião dos outros? E que outros? Para todos, Rita, sempre segura, regia-se pelo seu próprio livro, cujo conteúdo todos queriam ler e memorizar.

Talvez por uma qualquer força telepática, Rita apercebeu-se do pensamento que ia na cabeça do recém-conhecido, e, tal estrela, que não quer perder o brilho de quem a admira, rematou: Mas que sabem eles? Só estariam satisfeitos se fosse feita da mesma massa que petrifica com o tempo.
E calaram-se as vozes e os medos.

(j. miró)

17 de janeiro de 2010


Nunca ou poucas vezes as portas e as janelas daquelas ruas viram mulher igual. Samuel indagou a medo: Já reparaste como todos te olham, Rita? Pareces ter uma magia especial. Rita ignorou-o, ou talvez tenha sorrido. Nela, o sorriso era uma expressão automática.
José, que caminhava atrás dos dois, seguiu atentamente a reacção de Rita. Todos sabiam que ela prendia muitos olhares, todos os sabiam, mas ela negava-o sempre. Samuel, novo e talvez apenas transitório na vida dela, foi o único a admirar-se com o efeito de Rita. E poderia bem ter sido nesse momento que Rita assumiria: Sim, sei que prendo muitos olhares, mas são só olhares, nada mais. Nunca me verás prender corações. Palavras que José ouviria apenas tempos mais tarde, numa noite bem diferente daquela.

(Richard Hamilton)

12 de novembro de 2009


O amor prendeu-me como se prendem os corpos nas covas num dia de santos: num lugar fixo, onde me sei, e onde, ainda que não me vejas, tu me sabes encontrar.

Assim cantava Rita no dia negro de Novembro.

O amor prendeu-me, prendeu-me numa canção de abril nostálgica, fria e já sem significado, onde me agito entre letras e acordes de poeta morto à espera de uma alma com memória que me saiba cantar.

E ando presa, acorrentada... E que venham peritos dizerem-me que as correntes sou eu que as crio com os vícios do meu agir. E que venham esses inúteis. Para que os quero? Espelhos, não me faltam e conheço-me tão bem... Quero quem mas arranque! Mas, para isso, acaba-se-lhes rápido a perícia...
E o riso! O eterno riso que assombrava o mundo tão pequeno diante daquele gigante.

(paula rego)

29 de outubro de 2009


António desfinhava-se com mais um desses dias em que não se encontra a paz em nenhum lugar. A casa de Rita estava fria, um novo amor prendia-a a um encontro, imagine-se, no centro comercial. Além de Rita, tudo era sempre mais frio, e António não estava motivado a ultrapassar barreiras de gelo, construidas ao longo dos anos. Estava só. Esperaria Rita chegar a casa e logo lhe contaria como às vezes a vida o desfaz e se revolta numa luta inútil.
Rita sabia como ninguém acolher o desespero dos outros, dando, com o seu exemplo, um grito ao mundo: é esta a forma como se deve receber um amigo, quando ele precisa de nós; um amigo ou qualquer pessoa, afinal somos todos humanos.
Assim, António decidiu esperar. A vida ri-se da ironia. Minutos depois de António pensar em telefonar a Rita, o telefone dele tocou: Rita. Os amores de Rita! Poucas perguntas, António havia aprendido que a sua amiga precisava de ser ouvida e, tudo que lhe fugisse do contexto, seria demais. Era incrível como Rita sempre se entregava a estes novos amores. Em cada um, a esperança de ser amada e ser feliz.
A António, Rita poderia dizer que conhecia Pierre há menos de um dia. Não tinha de inventar que o havia conhecido havia muitos meses e daí o seu estado. Só António poderia compreender que se pode amar num segundo, quando se vive tão sequioso de amor. Só ele se esqueceria de si mesmo, a uma palavra de Rita, que, nunca alheia ao outro, lhe perguntaria depois do lamento: E tu como estás?

(barbara kruger)

9 de setembro de 2009


Um dias destes pego em mim e voo. Voo para onde os sonhos nao me prendem. Voo para onde a alegria nao faz falta e a tristeza nao incomoda.
Era o choro do pobre que, ainda que contaminado por vinho podre, nao deixava de lhe ecoar a alma.

25 de agosto de 2009


Embalou-se na vida como as palavras conhecessem-se então novo sentido e desfez um espelho em gargallhadas estridentes, sem medo de nenhuma praga de sete anos de azar.
As escadas foram poucas, a porta pequena e silenciosa, o carro rápido no arranque mas cuidadoso na condução urbana. Ainda assim, o momento foi dramático:

Rita mudara. E nada mais voltaria a ser como era, por mais voltas que o mundo pudesse dar.

(Kenneth Noland)

30 de maio de 2009

Era a noite mais fria de um Verão intenso. Sim, o Verão também tem noites frias, e há mesmo dias em que o sol não aquece. Assim, era unânime, aquela era a noite mais fria desse Verão. Mas não para todos. Tal como no Inverno, há quem sinta o frio de modo diferente, arriscando-se mesmo a dizer que o frio é psicológico. Seja lá como for, Simão sinta o frio como imaginava que os velhos de ossos frágeis o sentissem. Sentia o frio do modo que achava tão seu, porque não era velho e nem tinha ossos frágeis, houvesse um aparelho que afirmasse isso mesmo e ele veria com um sorriso a sua tristeza reconhecida num modo especial e único para sentir o frio. 

Não havia nenhum aparelho e, se usasse um motor de busca como o Google, logo perceberia que muitos se queixavam do mesmo. Irritado, pela falta de originalidade, abafava-se num cobertor de lã, que lhe confirmava a sua própria necessidade, até que Rita chegou. Com um cobertor de lã numa noite tão quente?! Já sei. Mal de amores, não? E o abraço que afastou aquele cobertor

27 de maio de 2009


A noite cansara-se daquele choro e os casais riam-se das rugas fáceis de quem se rezinga com a vida, e o relógio? O relógio, esse, olhava todos com a indiferença de quem se acostumou a ver passar o tempo, ver nascer, crescer e morrer vontades que se juraram eternas. O choro não lhe perturbava o seu ritmo, e era com o mesmo desprezo que ouvia os risos e via as rugas dos contrariados. 
Nada, ainda assim, conseguia tingir aqueles gestos de inutilidade. Saiam com a força de quem sabe que nasce por uma razão, e não recuavam ante a racionalidade dos que os rodeavam. 

(James Ensor)

29 de abril de 2009


Não se lembrava quando começara a pecar, mas conhecia aquele sabor havia muito tempo e tinha já encontrado muitos modos de conviver razoavelmente com ele, sem explodir em raiva e em lágrimas de arrependimento cada vez que memórias atrevidamente lhe atravessavam a consciência. Talvez fosse quando descobriu que pagara apenas cinquenta escudos por um chocolate que custava mais de duzentos, que bem lhe soubera, e como calara um superego exigente de tijolo católico e com tinta de velha, com a desculpa que o preço estava mal marcado, e, como se essa não fosse justa, o valor do chocolate estava bem mais do que inflacionado e havia tanto coisa em que o supermercado poderia enganar-se, pior, se o erro fosse ao contrário, eles nunca diriam nada. Assim se calava, mas nunca lhe sairia da memória, ainda que, hoje, à luz do direito do consumidor, Paulo estava correcto. O preço estava mal marcado. Quando a rapariga da caixa lhe perguntou o preço, ele disse honestamente cinquenta escudos, por ser exactamente o preço que vira marcado e por isso decidido comprar aquilo; só mais tarde, talvez numa próxima ida ao supermercado se apercebeu do engano, mas nem por isso o desfez e nesse tempo, pouco sabia de direito de consumidor. Era esse o peso, que ainda que perdoado, fazia impressão numa memória.
Talvez fosse mais cedo, mas mais tarde viria a dizer que nenhuma decisão é isenta de julgamento moral e que teria de viver com mais este pecado. 

(Martin Kippenberg)

24 de abril de 2009


Havia uma canção, dessas que fica por um tempo no ouvido a lembrar como nos podemos prender facilmente à novidade. 
Havia um casal, desses que atrevidamente exibe uma felicidade pornográfica de quem encontrou a paridade e a esfrega agora nos olhos de todos.
Havia gente, muita, vestida  como que por um mecanismo cego de atribuição de roupa a uma multidão, sem critério, talvez com a excepção do conforto.

Do seio daquele grupo, brotavam os sorrisos mais assustadores, seguranças que se recusavam a admitir a existência de gente infeliz ou de mal com a vida, ninguém nos há-de perturbar a nossa pacata felicidade, a cada gesto, a mesma mensagem, em jeito de protesto de quem se encontrou e se recusa a ver abalada a sua estabilidade. 

Rita, atenta, entrou, como saiu, sem uma palavra, com a promessa de tentar esquecer aquela realidade. 

(Louise Bourgeois, Nest)

4 de abril de 2009


Eram pedaços, pedaços pequenos de uma vida que se desfaziam em minúsculos fragmentos cortantes. Caiam como caiem nos sonhos os espelhos partidos e sentiam-se também como estes e com o azar que transportam. 
Cada um, uma memória, um entrelaçar de histórias a insistir manter preso aquele corpo. 
Havia momentos em que Filipa voava, gritava em som de gaivota no céu azul, desenhando trajectórias quase de pura liberdade. Noutros como este, a ameaça tornava-se no pior dos pesadelos, por se tão real e cruel. 
Uma vida desfeita em lâminas de um espelho partido. Em cada farpa, o reflexo de tudo o que foi. Em cada corte, o vermelho a lembrar que não podemos fugir de nós próprios. Era Filipa em convulsão exagerada por mais um dia que lhe fugia das mãos. 

Dan Graham

9 de março de 2009

Queimaram-me o sonho mais bonito que tive numa manhã de inverno.


Não, o sonho não tinha tempo, foi queimado numa dessa manhãs em que o gelo brilha como orvalho triunfante em seu apogeu. 
Acordei e apercebi-me daquele odor a queimado. Também aquele sonho não se concretizaria. Era talvez o último do género. De que género? Do género desses que conservam a ingenuidade de criança: se acreditarmos muito, talvez aconteça! 
Os sonhos acontecem por querermos muito. Aproveitamos uma pestana caída e desejamos fortemente. Nao o podemos é contar a ninguém. Contar estraga. É um acordo que fazemos com quem manda. Se nos portamos bem e sobretudo se nos mantivermos em silêncio, para não abrirmos precedentes,  tornará-se-á realidade. Esperamos, com essaa certeza porque estamos a cumprir as regras e é assim que se joga.  Só não sabemos quando, o que nos faz viver uns quantos falsos alarmes. Meros ensaios, porque temos tudo planeado. Acreditamos tanto, tanto, tanto; é preciso e o mundo é mágico. 

Pois foi, queimado e morto. Agora virão outros sonhos, mas nenhum outro como aquele. 

Rita, num monólogo.

(A. Jawlensky)

24 de fevereiro de 2009


Fez promessas, dessas quando se vê o fundo como o nosso chão e nada parece poder ser pior. Inocentes, tal como um filme, depressa nos arrependemos dessa certeza. Tudo pode ser sempre ainda pior. 

Rita prometeu o que todos prometem quando caem: não voltar a cair!

As palavras foram fortes, mas elas sabia-as tão inúteis. Como pedir a si própria para não voltar a cair? Acaso caira porque queria? Mas, por que se entregava de um modo extremo a um mundo que era indiferente à paixão de quem vive contra um relógio?
E a boca fugiu-lhe para a outras palavras:  O desespero faz-me caminhar

Não. Não se poderia enganar a si mesma. 
Era ela própria, que se levantava depois de uma queda com a naturalidade de quem não sabe mais fazer senão se levantar depois da derrota. 
Era ela própria, também, que sabia que esta queda tinha sido maior e estava longe de estar de pé.
Era ela própria que sabia que quanto mais baixo, pior era aquela queda.

(paula rego)

9 de fevereiro de 2009


No final de tudo, não precisamos de novas histórias. Não. Contem-nos as mesmas de sempre. Arranjem nomes diferentes, para serem criativos, mas damos o nosso mundo por um beijo no final e uns quantos heróis. 
E moeu naquilo a noite inteira. 
Gonçalo, por seu lado, não parava de criticar o argumento. Enquanto, o outro repetia a mesma verdade. 
Encontrar a verdade tem desta coisas, dá-nos certezas e devolve-nos texto e protagonismo que pensavamos esquecido. Naquela hora, Manuel daria o seu mundo também por um grande palco, onde todos ouvissem que ele conseguia perceber a natureza humana, e lhe dessem o reconhecimento. 
Não precisamos de novas histórias.

(Slumdog millionaire.)

25 de janeiro de 2009


Não deixes morrer a bailarina, ouvia-se da rua. Talvez a ironia, mas ninguém lhe era indiferente.
Dentro de casa, à semelhança do que se passava em tantas outras, a azáfama. Daquelas que alimentaria a memória por muitos anos, com pormenores de roupas a cheirar a naftalina, e sapatos a brilhar de lustro. Uma dessas coisas em família que havia sido planeada com sobeja antecedência. Semanas antes, o Pai já havia conversado sobre este acontecimento durante o jantar. As conversas repetiram-se durantes muitas outras refeições. Trocaram-se sorrisos cúmplices entre os mais velhos, mas para Fernando, o pequeno, ainda era um mistério. Às vezes, adormecia a pensar na beleza daquela bailarina, usando a imagem de um qualquer livro infantil de cuja memória retinha uma figura feminina vestida de cor de rosa e com uma varinha de condão.

Chegado o dia, todos haviam esquecido os dias que tiveram de esperar desde que foi anunciada a presença da bailarina na cidade. Chegara o momento de se preparem. Havia que ser pontual. Podia estar uma fila enorme. Não te lembras como foi da outra vez? Não, jantamos em casa. Poucos podiam jantar num restaurante daqueles.
Finalmente, sairam, estranhando a beleza aprumada de cada um e conheceram, então, a bailarina.
Não deixem morrer a bailarina! - ouviu-se uma vez mais.

(Rafal Milach)

22 de janeiro de 2009


Muitos? Nunca são muitos. Sabe sempre a pouco esta vida. Quando se é pequeno, nem se sabe o que é a vida. Vive-se por viver.

Crescemos e aprendemos a lutar contra uma vida que não é a nossa, a desafiar o destino e a dizer coisas como oxalá nunca o tivéssemos vivido. Desafiamos a vida porque a sabemos nossa e a temos num ponto que nada faz perceber que a podemos perder de facto. Ainda assim, entre guerras e revoltas, lá vamos vislumbrando que sabe bem viver, mas ainda custa.

Lá vem o tempo, em que as cartas se esgotam e o jogo se estreita em possibilidades. Os olhos pesam-nos e vemo-los presos à vida que se esgota.

E depois há o morrer.


Mas que farias tu se tivesses desde cedo a real ideia de que a vida é finita? - Paulo testava a sua imunidade ao discurso cansado de Filipa.


Teria lutado numa pressão maior para me entregar a esta vida todos os dias. Ter-me-ia desfeito e refeito em cada sonho e saberia ter-me vivido. Ou talvez não tivesse feito nada. Bem sabes, são coisas que me saem pela boca em momentos assim.
(fátima mendonça)

16 de janeiro de 2009

Amores (im)perfeitos


1. Houve um paixão e um compasso de espera num relógio que não obedeceu à pressa de um coração apaixonado.
Não houve papel numa apaixonada carta de amor, mas a paixão desenhou-se também em letras num monitor. Sem originalidade, José escreveu o que todos escrevem quando se apaixonam e o tentam negar.

2. Era um amor pequeno, desses que vem de um pacote engraçado que reúne dois corações vagabundos. Não se amavam, mas numa pressa para quebrar a solidão em que viviam, encostaram e encontram uma agitação mais calma na presença um do outro.

3. Recusada a ser iluminada por uma vela comum, Ana recuperava dos estragos de uma paixão não correspondida no reflexo do espelho, que lhe devolvia o gosto por si mesma. Em cada gesto, a recompensa e a promessa de que ficaria sempre com o que o espelho lhe devolveu.
(Roy Lichtenstein)

8 de janeiro de 2009

(in)certa


Ouvi-lhe os lamentos, os risos, as lágrimas. Ouviu tudo. Num só gesto, depois de uma pausa dramática, ao mesmo tempo que queimava o último cigarro, encetou:

Rita, a vida é de uma simplicidade extrema. Tão simples que chega a ser circular na sua forma. É redundante não só em relação a ti mesma, mas também em relação a todos os outros. Não esperes diferenças tão absolutas nas pessoas e nas situações. Não as encontrarás! Não me tomes a mal, mas custa-me ver a tua agitação numa vida, cujo único fim é tão igual a todos: morrer.
Rita pouco mais disse. Havia qualquer coisa naquelas palavras que soava a verdade e tudo que fugia disso, Rita, entendeu-o como desgosto de uma alma cansada, que não queria ser contrariada.
(graça morais)

4 de janeiro de 2009


Num único grito de loucura, Rita apoderou-se da realidade circular da sua vida.

Caíram certezas até então válidas, caíram preconceitos e generalizações, caiu Rita como até àquele momento se queria crer.

Caiu tão certa quando ouviu aquele grito do coração denunciando que nem tudo estava ganho ou perdido, e aquele órgão mantinha razões para bater numa irracionalidade constante.

Demolida a edificação, Rita tinha de esperar pela reconstrução de uma vida, em que tinha agora de incorporar a circularidade da mesma e que, apesar de tudo, ainda se encontrava à procura.


(J. Pollock)

2 de janeiro de 2009

Vazio(s)




Há algo na vida que me escapa, que me foge e me faz correr para os teus olhos e afastar dos meus e dos de tantos outros.


Há sonhos que brotam em instantes pintados de mania e se desfazem em lágrimas de derrota do meu ego.


Há sempre algo que se me escapa e esta dor de não me ter.




Rita encontrou as palavras do seu vazio.


(Martin Kippenberg)

1 de dezembro de 2008


Numa dessas noites frias, em que a lua, triste, se esconde por entre nuvens, que, cúmplices, choram, descem fadas e sonhos. Rita é criança e acredita.

Bater de portas, abrir de janelas, tocar de telefones , sons de computador.
Rita procura ouvir o prenúncio da mudança.

A cada som, contas simples de multiplicar denunciam o bater do coração.

Procura-te com a veemência de quem não se encontrou numa noite fria de Inverno, em que tudo lhe é alheio.


(Bartolomeu dos Santos)

16 de novembro de 2008

O meu amor bateu com a cabeça numa rocha.


O meu amor bateu com a cabeça numa rocha.

Era um amor de Rita, um desses amores grandes no momento, mas que se abatem com o passar das horas. Era, por aqueles dias, o seu amor, contudo. Numa rocha, talvez fosse metafórico. Paulo, astuto, perguntou: Então, o que se passou?

O meu amor bateu com a cabeça numa rocha. Rita repetiu a frase.

Paulo, silencioso, intimidou-a, forçando-a a desfazer-se em mais palavras.

Perdi-o e prefiro-o (saber) morto.

(Paula Rego, o fim da história)

7 de novembro de 2008


Olhou para aquela ruga como se fora a única marca no seu rosto.
Até àquele momento, Ana havia desafiado o tempo e se dito velha, mas agora havia marcas que não necessitavam da sua voz para serem percebidas.

Uma ruga, que não desaparecia com o desfazer da expressão, mas que permanecia, teimosa, como todo aquele corpo, a insistir para que se prendesse a um mundo de relógios e calendários, aos quais não poderia mais ser indiferente.

Chegaria o dia, onde lhes perderia a conta, mas aquela seria sempre a primeira, num tempo que passa e deixa marcas.

1 de novembro de 2008


Agitou-se como nunca num corpo tão só seu ao som da música de sempre, que ela própria entoava.

Olhares perdidos encontraram-na e, mais perdidos, soltaram risos.


Rio-me eu mais, porque sei por que danço!


Indiferente, ou pelo menos com uma aparente indiferença, Filipa, autónoma e inexorável, permaneceu, em múltiplos movimentos num ritmo único que lhe pertencia.

Terminada a música, porque até estas têm um fim, caminhou segura até ao extremo da porta, onde a esperava a vida de sempre atrás de um avental.


(Louise Bourgeois)

29 de setembro de 2008


Um coração cansado para amar palpitou duas vezes, não mais, e era já um sinal de vida. Cristina, já pouco hábil para o amor, mas ainda conhecedora daquele bater, duas vezes, como a paridade que todos procuramos, levantou-se e viu-lhe o rosto. Nada mais.
Havia livros, havia regras, que conheceu tão bem, que as escreveria não fossem já terem nascido sedutores semelhantes, mas havia aquele cansaço impregnado que a derrubava, aqueles vícios e teias de que não se conseguia desprender e que a encerravam numa grotesca incompetência para amar.

Demasiado tarde. Saiu como entrou, de mãos vazias, cúmplice com um coração que ironicamente ainda batia no seio do desespero.
(joana salvador)

24 de setembro de 2008

Discursos Imperfeitos


Houve cartas que não escrevi e palavras que nunca disse e nem uma lágrima me corre no rosto por isso. Nada se perdeu, continuava Ana, como se poderia perder? Não houve vitórias, não houve derrotas. Somos muito pequenos, nem todos os actos vão fazer estremecer o mundo, nem mesmo nós próprios.
Talvez abalar o mundo não deva ser a prioridade das acções. Contrapôs o outro, melhor seria se tivesse ficado no silêncio. Todos sabiam que quando botava faladura, Ana não valorizava contraposição, muito menos se gratuita. As opiniões não se discutem, estou a dar a minha, posso estar errada, mas não me importo.
Desta vez, diferente, Ana respondeu: Tens razão, nem todos os nossos actos tem esse objectivo, muito pelo contrário. Percebeu-lhe a estupidez, mas preferiu não deixar-se ferir, estava muito presa aquele texto. Retomou. Posso conviver com essa inutilidade de muitos gestos meus, assim como aqueles que deixei de fazer.
Falou ainda de vidas, de percursos pequenos, condenados de início que, nem por isso, deixam de o ser.
Não devemos esperar muito de uma vida onde não somos os únicos actores. Se este palco fosse só meu...Não conseguiu prosseguir por mais tempo, todas as palavras soavam-lhe ocas e limitou-se ao habitual, tentando fingir que aquele pateta não lhe havia arruinado o discurso.
(lourdes de castro)

22 de setembro de 2008


Acordou com um desagradável odor a vazio, o mesmo em que conseguira vencer a insónia.

Estava tão velha e acabada. Repetia-se em si própria o que ouvira contar a Filipa. Fugir dos que nos trazem tão más notícias. Filipa contou-lhe prontamente, era um misto de admiração e ódio para com a diva. Ana ouviu e, como sempre, ensaio um riso de desprezo, não maior do que o da outra, que regozijava com a má nova.

Chegada a casa, a história era diferente. A mais tinha descoberto três rugas fortes de cada lado dos seus olhos, que há muito a massacravam. Não esperava um Dorian Gray, mas custava-lhe assimilar aquele fardo, pesado demais para quem acreditava ainda não ter começado a viver.

O tempo por ti não passa. Como sempre, tão bonita. Ainda que estes fossem mais frequentes, esfregados em tantas circunstâncias sociais, Ana revia-se com outras estatísticas e o velha e acabada soava-lhe a verdade crua: um coração pobre e cansado numa carcaça que envelhecia precocemente.


(amélia fernandes)

11 de setembro de 2008




Enfrentou as rugas, uma a uma.
Por cada ruga um sonho perdido, ainda lhe saiu a frase, mais poética do que real. Bom seria que assim fosse, eram bem mais os sonhos derrotados do que aqueles riscos na sua face.
Margarida perdera-lhes a conta.
Nascera com o rasgo incrível para sonhar. Caminhava com o brilho dos olhos de quem acredita. Viu-lho José tantas vezes, assim como as em que lhe amparou a frustração.
Viu ela os sonhos, todos e mais alguns, através da câmpanula de vidro onde se agitava. ( Como se houvesse mais alguns que aquela cabeça não se lembrasse... Havia, pois, mas paulatinamente se calaram nesse mesmo mundo em que Margarida se fechou. )
Via-os ela todos os dias quando se investia num mundo que lhe era alheio. Reconhecia-se como ninguém. Eram as suas roupas, as suas frases, os seus amigos... Era ela, no corpo de outra, e de outra, de tantas outras que podiam sorrir.
Margarida recolhia-se naquele espelho, onde tentava integrar a vida frustada naquela cara enrrugada.
Havia duas pernas que sozinhas não podiam andar. Não somos os únicos motores da nossa vida, tentava calar o abalo do ego.
Havia uma vida que não era a sua, mas que tinha que viver. Não nasci para isto, cada um é para o que nasce. A velha Dulce sempre lhe gritava ao ouvido. Cala-te, mulher. Dorme. Amanhã é outro dia.

(paula rego)

4 de setembro de 2008




Rita acordou sobressaltada. Tinha-se visto, de um modo tão claro como só ela o poderia.

Um lençol desbotado a cobrir uma cama onde se debatia sozinha contra a insistência de uma insónia.
Uma almofada inútil no repousar e uma outra igualmente frustrada.

Não houve um abraço, um beijo, uma mão que encontrasse a sua.

Não viu Paulo, o primeiro e único amor da sua vida, não viu Gonçalo, Ricardo ou José, ou qualquer um dos que sucederam.

Apenas a almofada encardida onde se abraçava violentamente num esforço amargo, como todos os que são em vão, para fazer dela gente.


Uma luz fina que atravessava o estore e que denunciava a lua num espelho daquele guarda-roupa.
Esse tão conhecedor dos múltiplos ensaios de Rita para agradar e ser agradada.
Esse que a viu bela como ninguém, ou como ninguém a conseguiu ver.
Esse que amaldiçou os que não tinham os seus olhos.
Esse que a atraiçoava agora e lhe mostrava rugas secas numa cara sem vida.
Que a revelava só e despida, com o prazer de quem assiste ao fim tal como o descrevera.
Que se levantava numa noite cruel e denunciava os pequenos pecados da diva.
Esse, a quem ela tinha dedicado toda a sua vida, tão inutilmente...

O ranger de todas as madeiras sucedeu aos pequenos estalos de uma televisão acabada de desligar, depois um vazio que lhe cortava a alma e a deixava ouvir o palpitar de um coração já cansado para se debater contra mais uma insónia.

Há muitas vidas no mundo e nem todas podem ser pintadas da mesma cor, pensou talvez ainda durante aquele sonho.
(Bartolomeu dos Santos)

31 de agosto de 2008


Talvez nunca o ouvisses, mas Ana disse-o claramente. Tal como aqueles cometas que só aparecem de cem em cem anos, aquele tinha sido um acontecimento único e irrepetível.

Ana. De todos, menos de Ana, se esperaria tamanha afirmação.
Há coisas que só se deveriam dizer no último sopro de vida, porque afinal todos temos presente, mas sobretudo ela, o que um calendário ou até um relógio podem fazer a uma vida que se diz feliz.
Há coisas que só se deveriam dizer quando tivéssemos provas irrefutáveis e inabaláveis de que não vamos ser atraiçoados.
Há palavras que têm significados que ardem e que aleijam os que delas fazem um uso inadvertido.

Ainda assim
sem livros, árvores, ou filhos,
sem a quem chamar amor de vida, ou se embalar em noites de insónia,
com um grande nada e de mãos vazias carregando uns sacos de papel,

Ana desafiou os sonhos e quem escreve sobre eles, e, num raio de luz que rasgou o mundo, gritou ser feliz.

27 de agosto de 2008

E falou-lhe de um amor estranho.


Houve um não, que humedeceu olhos, quase até os seus.
Houve uma carta que lhe prometeu ser capaz de ultrapassar a dureza da resposta e devotar-se a um amor eterno.
Lida, lembrada e amarrotada, presa a um livro, vezes demais talvez para quem foi tão seguro no seu não. Ali permanecia de reserva, mas por quanto tempo?
Por quanto tempo seria capaz de prender um amor que não era o seu?
Rui começava a recear a perda de validade daquele precioso documento, ainda assim releu-o uma vez mais.
(Australian Post)

23 de agosto de 2008




É uma imagem? É uma imagem? É uma imagem que vale mil palavras?
Continuava Ana.


Uma imagem vale mil palavras.
Ouviam-se os risos. Paulo cúmplice sorria.


Quanto valerá o teu riso?
Pensou alto, talvez pouco.
E então o teu sorriso? Esse valerá mais?


Meu amor, o meu sorriso vale quanto tu quiseres.
Por momentos, pensaram, até mesmo a própria, que Paulo tinha conseguido o silêncio da diva, mas esta proseguiu após uma breve pausa.


E uma lágrima? Quanto vale uma lágrima?
Ouviu-se o silêncio de quem presta atenção.


Quanto vale uma lágrima? E se uma lágrima valer muito, quanto valerão as minhas?
Se eu chorar com muita força, deixo de me sentir?

Paulo permanecia cúmplice num mundo alheio
Estendeu-lhe o abraço de sempre que, também naquela noite, não lhe calou o sofrimento.

(As palavras acabariam por se esgotar horas mais tarde, como folhas rasgadas de um dicionário, que, nem por isso, deixa de existir.
Ana aceitaria o abraço e repousaria o tormento num ombro que não era o seu.
Paulo abandonaria um pedaço do seu coração já com pouca vida: guardado estará o bocado para quem o há-de comer!)

(Marlene Dumas)

19 de agosto de 2008


E depois veio um sorriso que a prendeu, como um daqueles mimosos e atrevidos de uma criança qualquer que não receia sê-lo.

Ana retribui, e, sabes, contava ela a Paulo, eu que até nem tenho muito jeito para esta coisa de sorrisos, sorri mesmo! Como se tivesse significado...

E teve-o. Não o quis admitir a Paulo, sempre tão avesso a deixar-se prender pelos estranhos, mas estava consciente do poder daquele sorriso.

Talvez este nem fosse suficiente ou talvez Ana não seja a mesma, mas já tinha visto antes sorrisos daqueles e sabia bem por que caminhos eram capazes de a conduzir. De qualquer modo, por agora, Ana esforçava-se arduamente por conservar a sensatez e para que este fosse apenas um sorriso lindo.

(barbara kruger)

1 de agosto de 2008

Sublinhados


"E também sou o único que pode recordar aquela vez em que fui desleal com o José Dinis. Andávamos com a tia Maria Elvira no rabisco do milho, cada qual no seu eito, de sacola ao pescoço, a recolher as maçarocas que por desatenção tivessem ficado nas canoilas quando da apanha geral, e eis que vejo uma maçaroca enorme no eito do José Dinis e me calo para ver se ele passava sem dar por ela. Quando, vítima da sua pequena estatura, seguiu adiante, fui eu lá e arranquei-a. A fúria do pobre espoliado era digna de ver-se, mas a tia Maria Elvira e outros mais velhos que estavam perto deram-me razão, ele que a tivesse visto, eu não lha tinha tirado. Estavam enganados. Se eu fosse generoso ter-lhe-ia dado a maçaroca ou então tinha-lhe dito simplesmente: «José Dinis, olha o que está aí à tua frente.» A culpa foi da constante rivalidade em que vivíamos, mas eu suspeito que no dia do Juízo Final, quando se puserem na balança as minhas boas e más acções, será o peso da maçaroca que me precipitará o inferno..."


José Saramago As Pequenas Memórias, 2006
(Graça Morais)

Rita apagou-se no espelho,
caiu nos fragmentos de um reflexo
enquanto esperava pelo tempo
que a devolveria a uma vida

....


Esperar angustia, dói, mas não mata
e a vida corre inexorávelmente
Testemunham os ponteiros de um relógio,
os sinos de uma igreja,
mesmo quando marcam o fim de quem foi.
Testemunham as voltas de um mundo
um sol e uma lua que se beijam sem a tua permissão.


....
Rita espera,
Agita-se
Faz-se louca para se dividir
Relê o livro
Saiu-lhe o grito e nem o ouve...
Conta-lhe
Diz-lhe que tudo virá com o tempo
Tudo o que tiver que vir, claro
.
hf
(a segui)

31 de julho de 2008


Recebeu um forte aperto que lhe disse é tudo um sonho.

De facto, era um sonho: um sonho esse aperto e essa sensação.

Por fracções de segundo, Ana sentiu a alegria infantil de fazer tudo nulo, mas depois veio o acordar e o perceber que havia um sol que lhe mostrava as cores do vazio.
hf
(paula rego)

16 de julho de 2008


Sonharam e permaneceram com olhos ainda fechados, tentando saborear o que a noite trouxera: uma menina de vestido azul, num jardim de amores perfeitos, uma cor que ultrapassava o preto e branco, um sei lá de coisas que se iam apagando, indiferentes ao esforço daquele par.
A luz daquele dia, entediada pela sua inutilidade, fez uso das suas artes mágicas e Pedro e Ana lá abriram os olhos, mas riram-se tanto e tão alto de um sonho lindo em que foram cúmplices, que a luz evanesceu frustrada.

5 de julho de 2008

carrinho de duas rodas




Era um carrinho de duas rodas, se mais rodas havia, não as vi.


Estranho... Um carro não tem duas rodas, ainda se fosse uma bicicleta... Não era um carro. Não podia ser!


Eu vi um carrinho e vi que tinha duas rodas, se mais rodas havia não as vi.


Não era um carro, não podia ser um carro. Se viste um carro, tinha de ter quatro rodas. Por que insistes num erro?


Insisto porque vi: vi um carrinho e vi que tinha duas rodas, se mais rodas havia não as vi.


O sol contou à lua essa discussão sobre um carrinho de duas rodas. O dia fechou-se e quando se abriu de novo, ainda se ouviu a lua a contar ao sol tudo o que ouvira. Juntos, reconstruiram a história de um carrinho com duas rodas e riram-se à volta de um mundo de orelhas moucas.

29 de junho de 2008

.












Que o vazio entre em cena como força única até a um derradeiro solilóquio. Nada mais.
O resto cumprirá o seu papel e cairá num desespero sem fim.

23 de junho de 2008


Agarrou-te ao sofrer como prova última de que não devemos amar, nem ser amados.
Contou esse desgosto em melodias suadas em notas suas.
Falou de palavras de dor extrema que substituiam o seu próprio nome.
Caiu numa queda bastante singular.
Abandonou-se num isolamento desigual.


A janela abriu-se e a lágrima perdeu-se com tantas outras naquela rua: estranhou o sofrimento . Nem mesmo esse só seu.


h

3 de junho de 2008

Guardou palavras


Disse-lhe que preferia o silêncio.
Nada mais poderia ser dito.
Frustado, o vento partiu em busca de novas palavras.
Encontrou-as à sombra de árvores que falavam de ninhos de Primavera,
por debaixo de janelas que exibiam amores que nunca acabam,
em campos de flores que se abriam para um sol que nascia para todos.
Abriu livros,
Rasgou poemas
Fustigou cartas de amor...
Regressou, com a mesma frustação com que partira.
Encontrou as duas bocas, cerradas, sem palavras.
Ao vê-lo chegar e sabendo o que procurava, um papagaio fez troça:
onde nada se diz, fica tudo no pensamento e nada para o vento.


hf
(fátima mendonça)

25 de maio de 2008

choveu tanto naquele dia



No início, todos acharam graça: o cheiro da terra molhada, a bom tempo vinha para as colheitas, também é preciso que chova, abril águas mil, entre muitas outras expressões de louvor ou pacífica aceitação que fluíam na boca de todos.
Depois, despertou-se a repulsa a um tempo que tardava em não mudar. Houve uns, em que essa reacção veio bem cedo; outros só muito lá para o fim. Era o incómodo de ter de andar sempre de guarda-chuva, a roupa de verão que se queria usar, o desagradável de estar tudo molhado, até mesmo a roupa que já não secava Ateou-se o fogo da desgraça e todos, ou pelo menos a maioria visível, estavam já contra esta chuva.
E depois?

Protestar. Manifestar. Um abaixo-assinado, a entregar a quem? O governo? O governo estava longe de controlar o tempo atmosférico. Esgotaram-se rapidamente as ideias de projectos de revolta. Esperar pareceu o mais razoável. Ouviram-se risos quando um dos líderes de opinião o disse, que mais opções haveria senão a de esperar? Esperar não era uma opção, era o inevitável. Calava-se a revolta, agora inútil, e simplesmente aguardava-se que o tempo mudasse.


hf
(bem-vindo à cidade da paz, fátima mendonça)

11 de maio de 2008

tem de se errar


Rita descobre o erro e tenta percorrer-lhe o fio até à origem.

Errou porque assim teve de ser. O relógio não parou para que ela tivesse o tempo para se debruçar sobre o problema, analisá-lo com atenção e cuidado, ensaiar decisões e talvez só depois agir. Não. Rita não teve esse cuidados, tivera muitos outros, mas o imperativo da acção soou alto e fez.
Agora, vive o erro, conhece-o a forma e o conteúdo circulares, mas nenhum destes é estático e inabalável pelas horas ou pelas dias. Sabe que continuará, depressa tudo tomará outras formas, também estas susceptíveis ao tempo e ao andar das coisas...

hf
paula rego: o vómito

7 de maio de 2008

ter a razão


Ana convenceu-se da razão, gritou-o alto em gestos e palavras que veiculam bem aquela certeza. Se alguém estava errado, não era ela. Rita, imperdoável. Paulo, lamentável. Maria, nem valeria a pena comentar.

Expos os seus argumentos, vezes sem conta, sempre que alguém lhe perguntava sobre o que passara. Entre mortos e feridos, Ana saira com a certeza de que ninguém lhe poderia ter feito o que fizeram, Não haveria retrocesso até a mágoa passar e isso, bem sabia, só depois de uma prova séria de arrependimento. Ora, a prova não veio. Nenhum dos restantes envolvidos se adiantou com tal manifestação. E tudo isto martelava na cabeça de Ana.

Eram regras com a transparência matemática, universais, as que tinham sido ofendidas, como não se adiantarem os ofensores e mostrarem reconhecimento do erro e arrependimento? De muito pouco lhe valeria a certeza de estar certa, se os outros não agiam como tal? De muito pouco, mesmo, ao ponto de reconsiderar argumentos, avançar para o telefone e tentar colocar um ponto final em todo aquele espectáculo de profunda falta de sentido, mostrar ela própria arrependimento por uma eventual falha... Mas também isso não veio.
Ana estava diferente porque não estava só. Não eram três contra uma, era uma uma com muitas certezas dessas enraizadas e que falam por nós: o tempo passa, e estava disposta a esperar até que tudo se recompusesse.


hf

joao francisco

27 de abril de 2008


o vento soprou a palavra e levou-a para longe daquele velho dicionário. Houve lágrimas, risos e até pausas, mas ninguém percebeu a sua falta.

Anos mais tarde, um perito em história natural das palavras deu conta de que, de acordo com cálculos elaborados com a colaboração de grupos exímios na arte de fazer contas, teria já desaparecido mais de uma dezena de palavras do velho dicionário. Caiu em saco roto, como um daqueles prenúncios de que tudo está mal e ficará ainda pior.

Meses volvidos, um conhecido artista da televisão disse em público que lhe faltavam palavras, as revistas e os jornais juntaram a simples soma de factos e venderam. Era preocupação de domínio público: faltavam palavras no velho dicionário.

Venderam muito mais quando explicaram o movimento das palavras, que são arrancadas durante uma noite de inverno, partem com o vento para o universo. Talvez um dia, se juntem, num pequeno dicionário. Venderam mais quando especularam sobre quais as palavras em fuga e quais seriam as próximas. Na cidade, vendiam-se pequenas pastilhas com as putativas futuras fugitivas para mascar, pintavam-se palavras nas paredes, recorriam-se a todos os artefactos para que todos as tivessem presentes e as reconhecessem em caso de fuga.

O mundo mudara, estava desperto para esta realidade, nos livros de escola, nos jornais, na televisão, mas então como não eram capazes de sentirem a falta e até reencontrarem as palavras ausentes?... Teóricos cogitaram muito e vieram com estas: palavras leva-as o vento e tudo o que não há se escusa.


hf

chema madoz

17 de abril de 2008


Congelou o tempo e riu-se para trás. Tinha pouco jeito para o gesto, mas até imitou cuidadosamente e até pareceu um estridente riso de indiferença. Gonçalo repetiu umas quantas vezes, até se esgotar o seu tempo naquela conversa. Não queria pensar e ponto final. Não se escreve mais pelo menos naquela página. Se calhar há outro livro onde registamos este tipo de alheamento, não acredito que a vida ficasse indiferente aquele conjunto de acontecimentos. Esperava o momento em que tivesse de regressar, porém até esse dia, mantinha-se congelado.

hf
miguel telles da gama