14 de março de 2006

CARTA

Valparaíso, 30 de Março de 2006-02-05


Pai,

Como já deves ter percebido escrevo de Valparaíso. É verdade, já cheguei ao Chile!! A última vez que escrevi estava em Fortaleza, desde então muito aconteceu…
Para cá chegar, viajei por terra e por mar, aproveitei boleias de camionistas, apanhei longas carreiras de autocarros e andei um pouquito a pé (para aí uns 500 km). Mas está a valer a pena. O Mundo é um poço de aventuras, um livro de conhecimentos, um filme de culturas diferentes, tudo reunido num grande teatro, que é esta vida em que nos encontramos.
A verdade, é que para poupar algum dinheiro aproveitei para atravessar o Brasil à custa de boleias, ou a pé. Com isso, poupei uma “pipa de massa” ao mesmo tempo, que pude viajar com maior segurança porque a inconstância dos banhos, e a facilidade com que se adquire o sotaque brasileiro permitiu-me passar diversas vezes apenas por mais um sem terra a caminho da grande cidade… Por outro lado, esse mesmo aspecto dificultou-me sempre a vida quando cheguei às cidades e tinha de procurar um lugar mais limpinho para pernoitar. Nada que não se resolvesse com recurso com uns reiais à vista… Assim, conheci Manaus, parte da Amazónia, o Amazonas (de facto uma das paragens foi no meio de um acampamento índio), Brasília, São Paulo, Rio, Porto Alegre, Foz do Iguaçu, até chegar à Argentina.
Aqui a falta de dinheiro aguçou o espírito e arranjei uns trabalhitos. Em Buenos Aires, trabalhei na ópera a vender bilhetes e a encaminhar os melómanos para os seus respectivos lugares ao mesmo tempo a que assisti a várias representações desde a Flauta do Mozart, ao Holandês do Wagner ou o Barbeiro do Rossini. Pelo meio aproveitava os dias para limpar as latrinas de um clube de tango onde diz o dono à boca cheia (o que eu duvido seriamente) o Piazzolla começou a carreira.
Após angariar alguns trocos, visitei o outro lado do Rio da Prata: Montevideu.
Aí parei um pouco. Seguindo o teu conselho de viver cada dia como se fosse o último e cada segundo como se fosse o primeiro, perdi-me. Acho que por momentos pensei ter encontrado o meu grande amor. Infelizmente foi apenas mais uma paixão (que enquanto durou foi realmente bom) e depois de um mês sentindo-me como tudo aquilo que limpei no clube de Buenos Aires, deixei o Uruguai. As mulheres sul americanas, têm aquilo que não dá para descrever, é a maneira como falam, andam, sorriem, olham, eu sei lá...
Tudo é diferente neste mundo, a miséria é enorme e ao lado de uma favela cresce um condomínio fechado com segurança à porta. Mas, mesmo com toda esta pobreza é impossível não reparar a alegria com que se empenham no dia-a-dia, e a forma alegre como olham para o muito que já possuem.
Segui depois em autocarro pelas Pampas, atravessei os Andes. Aproveitei para fazer algum turismo de montanha e subi até meio do Aconcágua, ou melhor até onde o mal da montanha deixou…
Depois dessa aventura cheguei a Valparaíso e agora é tempo de gozar a praia no oceano Pacífico e começar a adaptar-me às águas deste oceano.
Este é o momento para agradecer à mãe tudo o que me ensinou em relação a estar na cozinha e a tirar o melhor partido dela. Graças a isso, arranjei um trabalho como ajudante de cozinha num cargueiro que vai partir amanhã. Finalmente vou quase chegar ao Pólo Sul (primeira paragem em Tierra del Fuego), acho que vai dar para sentir o frio… Depois seguiremos em direcção a Wellington na Nova Zelândia onde deixarei o navio. Pelo meio paragens nas Galápagos, ilha da Páscoa e Tahiti. Belo cruzeiro…
Antes de terminar quero dizer que as saudades cercam-me todos os dias. A solidão é sempre uma constante embora envolvido por tanta gente e com tantos contactos já estabelecidos (já comprei outra agenda para guardar as moradas, telefones e os mails de tantos conhecidos). Procuro sempre não me esquecer de todos os teus conselhos, mas isso por vezes não chega. Olho sempre para traz como que a ver um filme de viagem, não esta mas toda aquela que fiz pela vida, e lá encontro o alimento e o conhecimento necessário para enfrentar os obstáculos que tenho pela frente. É como se tudo fosse um fio condutor que por vezes, se cruza fazendo um nó que não temos que romper mas antes apertar mais, e que permite a chegada de um outro fio para a ligação ser mais longa e segura ou simplesmente abre a hipótese de novos caminhos serem estabelecidos.
Bem deixemo-nos de filosofias (é o que faz estar só), mando beijinhos para todos aí em casa, mais que tudo quero que saibam que está tudo bem pese embora os breves assaltos de solidão. Junto envio algumas das muitas fotos que tenho tirado, embora não seja possível ver já tornei a fazer a barba, por isso não se assustem e acreditem sou mesmo eu…
Antes de terminar queria dar os parabéns à Ana pelo aniversário (não me esqueci, mas no meio da Amazónia não há telefones, e depois não fazia sentido com tanta coisa para dizer e tão pouco tempo); agradecer a encomenda que a mãe mandou para o Rio (ainda estava muito saborosa) e avisar que espero estar na Nova Zelândia daqui a três meses (mais semana, menos semana) e ficarei por lá um mesito, portanto: mãe não te coíbas de mandar outro.
Bem, agora é de vez, um grande abraço e um beijo cheio de contradição por querer estar aí, mas estar tão bem por aqui estar.


João





Luís Fernando

2 comentários:

Anônimo disse...

"ler, ler, ler... viver a vida que outros sonharam..." (delicioso)
s.chacim

multifacetada disse...

Sonho que um dia cometerei uma loucura assim...Seria delicioso vaguear pelo mundo, sem rumo ou direcção, sem nada e com tudo ao mesmo tempo...

Gostei imenso do texto.