25 de maio de 2008

choveu tanto naquele dia



No início, todos acharam graça: o cheiro da terra molhada, a bom tempo vinha para as colheitas, também é preciso que chova, abril águas mil, entre muitas outras expressões de louvor ou pacífica aceitação que fluíam na boca de todos.
Depois, despertou-se a repulsa a um tempo que tardava em não mudar. Houve uns, em que essa reacção veio bem cedo; outros só muito lá para o fim. Era o incómodo de ter de andar sempre de guarda-chuva, a roupa de verão que se queria usar, o desagradável de estar tudo molhado, até mesmo a roupa que já não secava Ateou-se o fogo da desgraça e todos, ou pelo menos a maioria visível, estavam já contra esta chuva.
E depois?

Protestar. Manifestar. Um abaixo-assinado, a entregar a quem? O governo? O governo estava longe de controlar o tempo atmosférico. Esgotaram-se rapidamente as ideias de projectos de revolta. Esperar pareceu o mais razoável. Ouviram-se risos quando um dos líderes de opinião o disse, que mais opções haveria senão a de esperar? Esperar não era uma opção, era o inevitável. Calava-se a revolta, agora inútil, e simplesmente aguardava-se que o tempo mudasse.


hf
(bem-vindo à cidade da paz, fátima mendonça)

11 de maio de 2008

tem de se errar


Rita descobre o erro e tenta percorrer-lhe o fio até à origem.

Errou porque assim teve de ser. O relógio não parou para que ela tivesse o tempo para se debruçar sobre o problema, analisá-lo com atenção e cuidado, ensaiar decisões e talvez só depois agir. Não. Rita não teve esse cuidados, tivera muitos outros, mas o imperativo da acção soou alto e fez.
Agora, vive o erro, conhece-o a forma e o conteúdo circulares, mas nenhum destes é estático e inabalável pelas horas ou pelas dias. Sabe que continuará, depressa tudo tomará outras formas, também estas susceptíveis ao tempo e ao andar das coisas...

hf
paula rego: o vómito

7 de maio de 2008

ter a razão


Ana convenceu-se da razão, gritou-o alto em gestos e palavras que veiculam bem aquela certeza. Se alguém estava errado, não era ela. Rita, imperdoável. Paulo, lamentável. Maria, nem valeria a pena comentar.

Expos os seus argumentos, vezes sem conta, sempre que alguém lhe perguntava sobre o que passara. Entre mortos e feridos, Ana saira com a certeza de que ninguém lhe poderia ter feito o que fizeram, Não haveria retrocesso até a mágoa passar e isso, bem sabia, só depois de uma prova séria de arrependimento. Ora, a prova não veio. Nenhum dos restantes envolvidos se adiantou com tal manifestação. E tudo isto martelava na cabeça de Ana.

Eram regras com a transparência matemática, universais, as que tinham sido ofendidas, como não se adiantarem os ofensores e mostrarem reconhecimento do erro e arrependimento? De muito pouco lhe valeria a certeza de estar certa, se os outros não agiam como tal? De muito pouco, mesmo, ao ponto de reconsiderar argumentos, avançar para o telefone e tentar colocar um ponto final em todo aquele espectáculo de profunda falta de sentido, mostrar ela própria arrependimento por uma eventual falha... Mas também isso não veio.
Ana estava diferente porque não estava só. Não eram três contra uma, era uma uma com muitas certezas dessas enraizadas e que falam por nós: o tempo passa, e estava disposta a esperar até que tudo se recompusesse.


hf

joao francisco

27 de abril de 2008


o vento soprou a palavra e levou-a para longe daquele velho dicionário. Houve lágrimas, risos e até pausas, mas ninguém percebeu a sua falta.

Anos mais tarde, um perito em história natural das palavras deu conta de que, de acordo com cálculos elaborados com a colaboração de grupos exímios na arte de fazer contas, teria já desaparecido mais de uma dezena de palavras do velho dicionário. Caiu em saco roto, como um daqueles prenúncios de que tudo está mal e ficará ainda pior.

Meses volvidos, um conhecido artista da televisão disse em público que lhe faltavam palavras, as revistas e os jornais juntaram a simples soma de factos e venderam. Era preocupação de domínio público: faltavam palavras no velho dicionário.

Venderam muito mais quando explicaram o movimento das palavras, que são arrancadas durante uma noite de inverno, partem com o vento para o universo. Talvez um dia, se juntem, num pequeno dicionário. Venderam mais quando especularam sobre quais as palavras em fuga e quais seriam as próximas. Na cidade, vendiam-se pequenas pastilhas com as putativas futuras fugitivas para mascar, pintavam-se palavras nas paredes, recorriam-se a todos os artefactos para que todos as tivessem presentes e as reconhecessem em caso de fuga.

O mundo mudara, estava desperto para esta realidade, nos livros de escola, nos jornais, na televisão, mas então como não eram capazes de sentirem a falta e até reencontrarem as palavras ausentes?... Teóricos cogitaram muito e vieram com estas: palavras leva-as o vento e tudo o que não há se escusa.


hf

chema madoz

17 de abril de 2008


Congelou o tempo e riu-se para trás. Tinha pouco jeito para o gesto, mas até imitou cuidadosamente e até pareceu um estridente riso de indiferença. Gonçalo repetiu umas quantas vezes, até se esgotar o seu tempo naquela conversa. Não queria pensar e ponto final. Não se escreve mais pelo menos naquela página. Se calhar há outro livro onde registamos este tipo de alheamento, não acredito que a vida ficasse indiferente aquele conjunto de acontecimentos. Esperava o momento em que tivesse de regressar, porém até esse dia, mantinha-se congelado.

hf
miguel telles da gama

28 de março de 2008

olhos cansados viram uma alma triste

Os meus olhos ou os teus?
Disse que, nessas alturas, sente todas as palavras lhe soam vazias e que não confiava na sua própria voz.
Falou de amores, de penas, de cruzes, de um coração que sofre, disse-me que amava, pediu um abraço, encostou-se e chorou.
Limpou as lágrimas e saiu-se com esta: nem mesmo sei se estas lágrimas são sinceras.
Amanhã, descansarei este corpo e recuperarei os olhos de sempre...


hf


(graça morais)

27 de março de 2008


Deu-lhe tudo e diz que recebeu pouco mais do que nada.

Hesitou no nada, mas ponderada colocou o pouco mais do que nada. Paula detestava dramatismos românticos e fugas a realidade aritmética a que se habituara. Com rigor, poderia dizer que recebeu algo em troca, mas a balança desquilibrava em claro desfavor para com ela. Lançou o desabafo, mas arrependeu-se. Estaria a cair nesse romantismo de que tanto se pretendia afastar? Ainda que houvesse essa possibilidade, continuaria no momento, tentando manter-se alheada de possíveis juizos de valor.

Sabes, não foi desta, também não foi desta que sinto a plena retribuição.

Gonçalo escutava indiferente.

Dói-me a alma sentir que eu faria tudo para que ele ficasse, e ele partiu. Dói-me a alma porque conheço o texto como ninguém, dou as deixas e nada se passa como o que quereria.

Gonçalo sorriu, incapaz de dizer que, embora fizesse o esforço, era evidente a sua incapacidade para compreender aquele desabafo. Pronto, teve de ir embora. E depois? Um sorriso também destrói, e Paula percebeu-o como reprovação.

Deixa lá, são coisas que me passam por esta cabeça depois de dez horas de trabalho.

Nessa altura, Gonçalo adiantou: eu compreendo.

Depois, foi o desejar que a conversa acabasse. Sentiu-se incompreendida, talvez patética.

Por que ainda continuo a querer?

hf

(Joana Salvador)

25 de março de 2008

riso das voltas que a pipa dava




Ainda agora me dá riso as voltas que a pipa dava! E ria-se como uma perdida.
Se dores tinha, daquelas no abdómen por tanto se rir, não parecia, por cada vez se tornava mais poderoso o estridor daquele riso.
Se havia um momento em que se pensava que ia cessar, o engano era imediatamente revelado quando se soltava num daqueles paroxismos nada contagiantes. Repetia a mesma frase, recontrui-a em inúmeros arranjos, trauteava-a como se de canção se tratasse, empenhava notas como se fosse música, mas logo explodia o riso.

Ria alto, tão alto, talvez não o suficiente para preencher o vazio do momento.

hf
(Paula Rego)

18 de março de 2008

Conta-me uma daquelas histórias que te faz sonhar.




Uma história, uma história pequenina ou até maior, que não me importo de te ouvir falar.
Fala-me de uma árvore de ramagem verde, com frutos vermelhos e redondos, onde debica um passaro azul.
Faz-me ver um sol amarelo e pintar-lhe um sorriso grande.
Desenha umas nuvens num céu azul e deixa aparecer o verde quando tocar o amarelo do sol.
Conta-me da casa pequena, com três janelas e uma varanda.
Pinta o fumo branco de uma chaminé alta.

Dá-me um baloiço entre flores mil onde tu e eu vamos rir e pára o relógio.


hf
(fátima mendonça, sem título)

17 de março de 2008


Não quis partir o momento, Paulo ecoou as mesmas palavras que se esvaziaram na boca de Ana. O tempo estava prestes a passar e ele sabia bem que as palavras depressam iriam deixar de ter sentido. Repetiu ainda assim as saudades que tinha, falou muito das que não tinha e das que deixaria de ter. Repetiu um sentimento forte, um do qual já começava a esquecer-se e que se apagaria quando Ana reencontrasse o amor de sempre. Foi redondamente oco, quando o telefone ouviu planos para o regresso, como se ainda houvesse lugar para os dois.
Ouviu ao longe o bater de um relógio de parede, que, ainda que velho e trópego, demarcava este momento: 11 horas e Paulo avançou.
hf
(lourdes de castro, auto-retrato)

15 de março de 2008


Nem sempre a corda se rompe do lado mais fraco. Se te pareceu que lhe passou ao lado, o engano foi grande. Ana caiu! O espanto viu o seu auge quando a história finalmente foi contada e se percebeu que tinha sido a primeira. A vida pode sempre surpreender-nos. (Ou talvez não, se estivermos muito próximos da realidade e com capacidade de adaptação bem flexível. ) Ana sentiu o circular frio no estomago: entregara-se cedo demais. Mas quem contou a história, viu tudo: não estava só! E essa foi definitivamente a surpresa...


hf

8 de março de 2008


Dói mais na alma saber que se existe mesmo depois da perda; que não ficamos caidos na maioria das vezes num desespero eterno; que este tem fim tal como a própria razão para o mesmo e que continuaremos.


Dói muito perceber que o mundo gira inexoravelmente e que os gestos tornar-se-ão inúteis; que o luto se fará, como já tantos os outros e depois de fibrosado, há que recomeçar.


Dói o circulo.


Dói a alma por saber que pode viver sem ti.


hf

(Graça Morais)


6 de março de 2008

Ruguites




Conhecido o processo de inflamação, é legítimo lançar o neologismo: ruguite. Acordou com uma ruguite no sulo nasolabial esquerdo. Parece-lhe científico? Como se define ruguite? Sabe quais são os sinais cardinais? Certamente, iguais às de qualquer inflamação. Incha, desincha e passa. Esta não passa, mas haverá as que passa? Haverá as que se agravam, recidivam ou até se resolvem espontaneamente? Haverá um eu que se afunda na força da gravação de uma ruga? Haverá a fibrose marcada da cicatriz de uma ruga. Haverá tudo e talvez mesmo nada. Vamos escrever um ensaio. Um dia destes!

hf
(paulo robalo, desenho sem papel)

10 de fevereiro de 2008


Tive um cubo de gelo derretido na espinha e senti um arrepio. Brutal, Ana dissolveu a possibilidade de troca de palavras. Tem punhos frágeis, mas também soube dizer basta naquela mesa. Guilherme fechou a boca por sentir a farpa, mas, imune e de resposta rápida, assaltou com mas a conversa não está a agradar?. Não, estou parva. Vou para casa. Distribui os beijos com um sorriso e fechou a porta. Foram gestos rápidos e pouco aborvidos, nem tempo houve para ouvir um O que se passa? da Rita, ou um Queres companhia? do António ou o bem mais sincero Também vou daqui a pouco e ligo-te de seguida. do Filipe. Os dois eram iguais, até onde a igualdade o permitia. Havia a diferença no agir: o cumprimento das regras, e que regras!, a que Filipe se submetia; mas também ele estava aborrecido com o Guilherme e com que este representava. Suportável, mas não naquele dia para Ana. Há dias em que não me apetece aturá-lo. Eu sei, mas vamos tomar café os dois. E foram, cúmplices uma vez mais sob aquele céu.
hf

1 de fevereiro de 2008

E depois veio o perder...



E perdeu tudo. Tudo o que tinha e julgava seu. Tudo que ainda era nada, mas lhe estava prometido. André percorreu aquela sala vezes sem conta, fazendo estranhos desenhos de desespero. Perder tudo? Havia coisas que nem se importaria e sempre soube que lhe eram emprestadas, mas e o resto que já era tão seu? E o que era quase seu? Surgiram estas no meio de tantas outras indignações.

O tempo passou, cerca de 30 minutos, André ensaiou esforços de resígnio e quis tirar do saco a sapiência que não era sua: tudo ainda será meu, mas de um modo diferente. Reconheceu imediatamente o seu alheamento a estas palavras, lançou um grande ai e a revolta continuou, continuou e continuou até o relógio marcar mais uma hora e André perceber o vazio dos gestos e palavras contra a pontualidade de um relógio e decidir calar todo o seu desespero.

hf

(júlio pomar: gato e o violino)



23 de janeiro de 2008

De volta à roda do mundo, ainda saberás rodar?


Patrícia auscultou-lhe um coração partido. Partido, Paula sorriu, do jeito que se faz quando nos dizem o óbvio. Nem um suspiro, nem um comentário, apenas um sorriso talvez também por ver-lhe reconhecida aquele lacinante aperto que a incomodava há muito. Sim, eu sei. Nada mais e já fui muito, talvez demais. Patrícia, essa armazenou o caso, mais um que se parte. Acontece. Fragilidades de um ser. Mas há coisas piores, pois então. Repouso, muito repouso. E as melhoras. Obrigada. Obrigada por quê? Por nada, mas saiu-lhe por educação. A dor era sua e teria aprender a viver com ela. Tudo passa... rematou a ciência ante um coração partido.
(fátima mendonça, cordeiro)
hf

2 de janeiro de 2008


Encontrei uma palavra a tentar cair do dicionário. A dúvida infiltrou-se-me por percursos já conhecidos. Talvez o primeiro ímpeto tenha sido o de a forçar a voltar, talvez fosse o segundo. Sei que foram tantas as voltas que perdi a noção de qual o primeiro movimento. Porventura poderia ser importante, fazer a memória ter um esforço, não vá esta ordem de aparecimento estar relacionada com a sua relevância. Não sei se o Guilherme já o sentiu, mas é tão terrível como descobrir que os dias se sucedem sem reflectirem a nossa vontade; e esta comparação é válida, não se apresse a dizer-me que a primeira depende do movimento da nossa vontade. Se o fizer, então nunca o viveu. Descobri que a palavra caiu numa cadeia de acontecimentos inexorável! Até me passou pela cabeça memorizá-la para a voltar a escrever, quando as correntes se acalmassem, mas não! Não e não! Nem me lembro da palavra, sei que o dicionário já não a tem, como qualquer dia perderá outras, e até verá novas serem-lhe escritas.
É terrível, terrível, meu caro perceber que muito passa sem o nosso controlo, mesmo o que a priori pareceria resultado de um esforço volitivo. Terrível também o desespero de não lhe percebermos o rumo.

hf
(fotografia: Chema Madoz)

6 de dezembro de 2007

como se conta a história?


A vida cai aos poucos na energia de um relógio que não nos acompanha. O pano abre-se e a luz dá-te o protagonismo neste solilóquio. Como contar a história? Uma vida em palavras...

Mereceria, pelo menos, um guião bem feito, escrito por quem sabe mais, por quem sabe escolher a palavra certa, a eufemizar o que nunca se planeou dizer e a hiperbolizar o que já todos sabemos. Talvez fosse o caso de não dizer nada, ou de dizer um pouco mais do que nada. Porventura, até poderia contar tudo como foi numa louca originalidade pósmoderna.
Ensaios vários e bem coordenados. Cuidados de imagem. A luz seria importante. Tantos pormenores talhados para uma maioria gostar, lançar elogios mil, que calassem o embaraço do momento, as dúvidas, os pecados, os que não nada dizem e tudo pensam.

Injusta a vida que não nos permite ensaiar. E o livro abre-se . Conto-me como foi e peço-me que nada diga.



hf

(Paula Coelho, Vómito)

3 de dezembro de 2007

quando o coração ficou pequeno


Ainda se recorda do dia em que acordou e sentiu um coração pequeno. Reconta-o de um modo tão dramático, como se fosse uma verruga que tivesse nascido bem na ponta do nariz, de um dia para o outro e o espelho da manhã trouxesse essa novidade. Há dias, em que Teresa, bem mais racional, é capaz de se perder em explicações mais plausíveis sobre a pequenez do seu coração. Envolve-se de tal modo no discurso, que a interrupção pode ser fatal, tornando-se bastante desagradável. Ninguém lhe escuta a dor de ter um coração pequeno, retoma o romantismo e, por vezes, o envolvimento é tal que até verte uma lágrima. Curioso, mas há dias em que o sol lhe ilumina a alma e faz uma ou outra graça sobre o assunto. Dias há em que logo se arrepende da jucosidade e assombra o momento com um deviam ter respeito. Há horas em que tudo parece ser normal, e até se ri da sua patetice.


Às vezes, até Paulo se interroga se também ele terá um coração pequeno. Dedicar-se durante tanto tempo sobre a má sorte de Teresa, e , se no final, também o dele for pequeno. Por momentos, chega a esquecer-se de Teresa, mas logo tudo volta a ser como era.


Por que raio tenho um coração pequeno?, grita Teresa ao espelho.
hf
(fátima mendonça)

24 de novembro de 2007





Lembra-se de lhe contares tudo e de se perder num olhar teu. De palavras poucas, antes de um sorriso. Mais ainda do gelar do corpo perante a tua voz. Rita nunca se esqueceu e remói o dia em que lhe fizeste perceber o movimento giratório do mundo. As lágrimas nunca serviriam para secar um momento, mas apenas para o tornar menos penosa a sua progressão. Esta era inexorável, e Rita entendeu-o bem. Agora , fica o esperar que uns graus de latitute mais à frente tudo voltasse a fazer sentido, se bem nada como dantes.




A frase bateu-lhe três vezes, tornou-se batida e não negou: é minha!


hf


(Paula Rego, a dar de comer)